RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.8)

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Artigo Original

Entre muros e portas dos fundos: violência e cidade a partir do olhar de um adolescente

Between walls and back doors: violence and city from the view of a teenager

Lisley Braun Toniolo1; Bruna Simoes de Albuquerque2; Amanda Malta3; Andréa Máris Campos Guerra4; Cristiane de Freitas Cunha5

1. Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH, Programa de Pós Graduaçao em Psicologia - Estudos Psicanalíticos. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. UFMG, Faculdade de Educaçao - FaE. Programa de Pós-Graduaçao Conhecimento e Inclusao Social em Educaçao. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. UFMG, FAFICH, Curso de Psicologia; Clínica de Atençao Psicossocial Freud Cidadao. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. UFMG, FAFICH, Departamento de Psicologia, Nucleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo - PSILACS. Belo Horizonte, MG - Brasil
5. UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria, Programa de Pós-Graduaçao Promoçao da Saúde e Prevençao da Violência. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Lisley Braun Toniolo
E-mail: lisley@gmail.com

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: Nosso intuito é o de acompanhar o movimento dos jovens, para compreender como eles enfrentam a passagem adolescente e constroem seu lugar no mundo, ao mesmo tempo em que revelam e questionam os contornos de nosso tempo;
OBJETIVOS: Mapear os lugares e não lugares que a cidade encarna para os jovens;
MÉTODOS: Mapeamento subjetivo das vivências de um jovem belorizontino;
RESULTADOS: O jovem evidencia a complexidade de viver sua adolescência numa cidade que erige muros invisíveis, tornando-se muitas vezes hostil aos jovens, principalmente negros e pobres que habitam suas periferias. Mas nos aponta que há portas dos fundos, pelas quais pode experimentar saídas inéditas que prescindam da violência e do risco aos quais lançava seu corpo;
CONCLUSÕES: O jovem compara a cidade à vida, desenhando em seu mapa as trajetórias que ocuparam sua adolescência. Se por um lado a violência é marca central dessa experiência, percebemos como a cidade pode se fazer violenta aos jovens, que, contudo, conseguem interrogá-la indo além de seus muros.

Palavras-chave: Violência; Adolescente; Relações Interpessoais; Promoção da Saúde.

 

INTRODUÇÃO: POR ONDE ANDAM OS ADOLESCENTES?

A discussão sobre a violência no encontro com o espaço urbano mantém conexão quase imediata com a presença dos adolescentes na cidade que, independentemente de serem ou não autores de ato infracional, aparecem comumente como protagonistas da violência urbana nas manchetes midiáticas. Em pesquisas e trabalho com a juventude buscou-se fazer vacilar concepções costuradas pelo senso comum e desfazer conexoes diretas, frequentemente atravessadas pelo preconceito, pelo racismo e pela massificação da visão sobre os adolescentes. O intuito foi acompanhar o movimento dos jovens, para compreender como eles enfrentam a passagem adolescente e constroem seu lugar no mundo, ao mesmo tempo em que revelam e questionam os contornos de nosso tempo.

Os adolescentes têm aparecido como protagonistas de lutas importantes no cenário brasileiro. Como exemplo, podem-se citar os alunos das escolas estaduais de São Paulo que, em 2015, sustentaram um movimento consistente contra a reorganização da rede de ensino feita unilateralmente pelo governo de seu estado. Os alunos ocuparam as escolas, enfrentaram violência policial e mobilizaram a sociedade civil para lutar por uma educação que responda melhor aos seus desejos e expectativas.1 No ano de 2016 tem-se acompanhado de perto o movimento de estudantes por todo o Brasil contra a PEC 241 (proposta de emenda à constituição que trata do teto para os gastos públicos) e a MP 746 (medida provisória que versa sobre a reforma do ensino médio), em especial no Colégio Estadual Central, no qual se realizou uma roda de conversa com os estudantes sobre os desafios pessoais e coletivos da ocupação. Assim, acompanhamos esses movimentos interessadas em como os jovens o fazem coletivamente, mas também a partir da marca pessoal de cada um, daquilo que cada um oferece de si, de sua história, de seus anseios, por fim, de seu momento.

Diante de tal contexto, o presente artigo pretende, a partir da dissertação de mestrado "Encontros entre violência e cidade a partir do olhar de um adolescente"a, pensar elementos cruciais e também nuanças não tao evidentes sobre os temas aqui em questao. Nesta pesquisa interdisciplinar entre psicanálise lacaniana, urbanismo e sociologia, o que nos orientava era que o saber acadêmico não se sobrepusesse ao saber do sujeito pesquisado. Esse sujeito, neste estudo nomeado de Mateus, foi entrevistado em Belo Horizonte, em locais extramuros, momento no qual estava às voltas com a cidade que se anunciava após a medida socioeducativa de internação.

 

METODOLOGIA: POR ONDE VOCE ANDA EM BELO HORIZONTE?

Pergunta que disparou a pesquisa era respondida pelo jovem diante de um mapa de Belo Horizonte impresso, máquina fotográfica e gravador de voz. Mateus foi entrevistado três vezes em lugares variados na cidade, escolhidos por ele, lugares onde "se sente bem". Vale ressaltar que Mateus é residente da periferia belorizontina. Buscou-se não apenas mapear lugares, mas também as histórias que o faziam existir em sua adolescência. Resgatou, diante do mapa, sua própria história, os modos como olhou e ocupou a cidade e foi olhado e ocupado por ela, tecendo uma cidade imaginada e reinventada.

Entende-se que para cada jovem uma cidade se inventa2 e essa possível invenção, entrelaçamento da tradição com o novo, é tema de investigação. Cada geração que anda por um espaço urbano introduz aí sua forma de viver a cidade, sua maneira de estar com o outro, no campo do Outro. Andar pela cidade é, finalmente, uma forma de escrita, inscrever seu corpo, habitar lugares e modificar o próprio espaço, vasculhar o corpo da cidade. Antes de Mateus, várias gerações de escritores e poetas inscreveram lugares na cartografia literária de Belo Horizonte. Seus atos e seus lugares preferidos escreveram outra cidade, uma cidade como linguagem própria. Ao escalar o Viaduto Santa Tereza, Carlos Drummond de Andrade constrói de modo literário Belo Horizonte e marca de maneira perene a relação entre a experiência urbana e a literatura moderna.2 Quantos foram os poemas, contos ou crônicas surgidos da relação dos jovens escritores com Belo Horizonte! Veremos qual a escrita de Mateus para os contornos de sua cidade delineada a partir de sua história.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO: A CIDADE É ISSO TUDO QUE EU VIVO

As primeiras lembranças da infância já situam a violência vivida encarnada na nomeação "sem terra" a partir da forma sob a qual sua família vivenciava a cidade. Relata: "meus pais invadiam os lugar, a polícia chegava e descia a pancada e tirava tudo". Esses primeiros encontros com a violência policial se desdobram na própria violência à qual Mateus se lançará mais tarde. No início da adolescência, localiza a passagem de um "menino bobo e inocente" para um adolescente que se rebela contra os modos de gozo familiares: "lá em casa quem ditava as regras era a igreja", "até torcer, não era considerado certo". Cabe a Mateus entao ultrapassar os muros da casa da família. Nas palavras de Rimbaud, era preciso "encontrar o lugar e a fórmula"3:32. O trabalho do adolescente, para a Psicanálise, passaria por inventar-se na sociedade a partir do que o constitui, da criança que ele não é mais, outrora aprisionada no desejo do Outro parental uma tentativa de responder ao vazio que se abre a partir da puberdade.3

É entao lá fora que o adolescente vai vivenciar aquilo que materializa a sua adolescência, nas suas palavras: "ali começou minha fase de adolescência, que cê começa a pegar mulher, cê chega em casa bêbado de madrugada, cê já conhece gente errada, cê faz merda, essas coisas". Por meio do curso de informática no qual recebia uma bolsa, Mateus passou a sair sozinho pela primeira vez. A sensação de liberdade se amplia com o dinheiro ganho, que o possibilitou ir "onde quisesse". Os territórios tomam novos contornos. Na biblioteca da Praça da Liberdade, aos 14 anos ele buscava livros sobre ufologia e os "heróis da ditadura", aqueles que resistiram com violência às normas tirânicas e caprichosas impostas pelos ditadores, onde se pode arriscar um lampejo do pai de Mateus ou do modo como ele o vê. Nas entrevistas com outros jovens tem-se deparado frequentemente com a importância desses encontros contingentes que retiram o adolescente de um "vazio", nomeado assim por eles, e mudam seu andar pela cidade e pela vida, muitas vezes a partir de uma conexão com a literatura, a música, o cinema, a rimab.

Se Mateus já se interessava em saber sobre a violência como forma de resistência ao Outro tirânico, foi durante um jogo de futebol que, na arquibancada de uma torcida organizada, algo da violência o capturou no real de seu corpo, quando ele sentiu "aquele clima de que vai acontecer alguma coisa", suficiente para ele "não parar de ir mais". Assim, abandona os livros e, nas arquibancadas da cidade, assume o nome da torcida organizada de seu time, laçando-se em brigas constantes e encontros que "sempre dá choque". Mateus sai da casa de seus pais para trabalhar e morar na sede da torcida por dois anos. A cidade se amplia no mesmo movimento em que se fecha. Se agora ele viaja com seu time, circula por lugares novos, sua circulação também se restringe a certas regionais ou condicionantes como estar acompanhado. A cidade para Mateus esboça tanto possibilidades quanto muros que, se ultrapassados, enunciam a morte, circunscrevendo a disposição geográfica da cidade na rivalidade imaginária. A imersão na torcida ressignifica os modos de circular e de viver o território. Brigar parecia uma tentativa de sobreviver para organizar algo do real da adolescência, adquirir uma mestria sobre a contingência, sobre o impossível.3

Em suas palavras, a intenção da briga "é mostrar pro outro que você é mais forte" e, para tanto, estampar no corpo do outro uma perda. Marcar a perda no outro reintroduz no real a dimensão segregativa da constituição do sujeito, levando-a às últimas consequências ao despedaçar o corpo do outro.4 A violência entre as torcidas, como no tráfico de drogas, "praticamente institucionaliza um sistema de vida"5:254 que para Mateus somente foi interrompido quando houve o cometimento de um homicídio fruto de uma das brigas nas quais estava envolvido. Sentenciado à medida socioeducativa de internação, a cidade e o território são restringidos: Quase nada, Zoológico, Centro de Saúde, Escola, Fórum. A cidade, como Mateus alertou, se reduzia ao movimento "da cela pro pátio". "Não é um lugar legal. [...] Quando você tá na rua você que é dono de você mesmo, você faz o que você quiser". A rua parece simbolizar para Mateus algo da liberdade da qual foi privado dos mais diversos modos ao longo de sua trajetória por sua família, Estado e Igreja.

Mateus retoma brevemente sua incursão entre os black blocs, quando as torcidas organizadas se uniram para "descontar" seu sofrimento na polícia. "Porque a polícia é que faz a gente sofrer mais, nem eles (torcida rival) têm tanto problema com a gente quanto a polícia. [...] eles eram nosso inimigo, era inimigo de todo mundo". Deslocando da nomeação impressa pela torcida, Mateus se encontra com o nome "nós pobres", o que tem efeitos na sua relação com a cidade e a violência. A polícia responderia, assim, tanto pelas agressões feitas aos torcedores, quanto pelo sofrimento e segregação vivenciados na condição da pobreza. Para Mateus, os pobres só serao ouvidos em seu sofrimento quando quebrarem "tudo", quando infringirem dor. Busca entao tornar-se visível no mesmo palco do espetáculo que o segrega cotidianamente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CIDADE HOJE

Na cidade encontrada à época da pesquisa (2014), muitos lugares permanecem os mesmos, sendo ressignificados a partir da distância que tomou da "loucura" de sua adolescência. Outros lugares são criados e seu mapa se reconfigura à medida que tateia a cidade que se abre e se fecha para um jovem, que não é qualquer, mas que representa também outros tantos jovens de periferia, negros, egressos, pobres. Em sua singularidade, portanto, pretende atravessar o lugar do "qualquer um" para se tornar alguém "importante" na cena da cidade, que, portando uma profissão e a "roupa certa", poderá se rearranjar em seu território, de maneira a circular por novos lugares, que hoje são palcos ativos de segregação: shoppings, palácios...

Na Belo Horizonte de ontem, jovens escritores deram uma resposta da literatura à cidade que encontraram na "loucura" de sua juventude. Escalaram arcos em sinal de protesto, escreveram poemas e textos duros colocando o dedo na ferida de uma "nova" cidade que pode se mostrar tao ultrapassada e retrógada no uso e compartilhamento de seus espaços. Drummond, Pedro Nava e Cyro dos Anjos, em seu desatino juvenil, fizeram parte do movimento de ocupação do espaço cultural da Belo Horizonte dos anos 20: a rua da Bahia nunca mais foi a mesma.2

Para Mateus, um certo palácio e a praça de uma certa liberdade não serao mais os mesmos. A cidade não se constitui a partir das delimitações oficiais, ela escapa e se molda, não sem violência, para cada um. A cidade é a vida. Nas palavras de Mateus: "A cidade é essa, isso tudo que eu vivo, que eu marquei no mapa as partes que eu vou, que... é isso..." Para cada um, a sua medida. "Cada um tem uma cidade do seu tamanho. Tem gente que a cidade é praticamente só o bairro. Não sai do bairro, e não faz mais nada, a cidade pra ele é só aquilo ali... acho que varia de pessoa pra pessoa. O que que é a cidade e a visão dela".

Em seu mapa, Mateus mostra lugares onde ele gostaria de ir, mas para os quais não considera ter "a roupa certa", aquela que seu pai não pode lhe dar para que ele tenha sua marca e não seja "confundido com um vendedor". Contudo, a saída para tal impasse se anuncia pela possibilidade do estudo universitário, tornando-se um advogado, um delegado... por fim, um pedagogo, que poderá dar aula para os adolescentes "presos" e ensinar-lhes "como o sistema funciona". Conquista que quase empreendeu, ao passar no vestibular em uma universidade pública no estado, mas que abdicou diante da forte pressão paterna, que o acusava de "abandonar" a família.

Os limites de sua escrita na cena da cidade se renovam sob novas ingerências. A cidade é um texto que implica a relação do jovem com o outro social, concretamente encarnado pelos atores da cena pública, mas também com seu Outro simbólico, elemento inconsciente que o agencia em suas decisões - ambos os lugares de onde interdições e consentimentos podem advir. E fica o desejo de que a cidade não seja refratária ao novo que pode nela se escrever.

 

AGRADECIMENTO

A FAPEMIG pelo financiamento do projeto "O adolescente e a cidade Conversação Clínica: Observatório da Saúde do Adolescente da UFMG e Família Cidada - BH sem miséria"/APQ-02680-13

 

REFERENCIAS

1. Freitas F, Viana V, Luiza J. Almanaque entrevista. In: Almanaque n. 16. Rev Eletrônica IPSM-MG. 2016. [citado em 2016 jan. 15]. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/almanaque-on-line-entrevista-6/

2. Marques F. Uma cidade se inventa: Belo Horizonte na visão de seus escritores. Belo Horizonte: Scriptum; 2015.

3. Lacadée P. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; 2011.

4. Ramirez ME. Identidad y segregación. In: Rev Poiésis. 2000. Disponível em: http://www.funlam.edu.co/revistas/index.php/poiesis/article/view/1112/1010.

5. Guerra A, Soares CAN, Pinheiro MCM, Lima NL. Violência urbana, criminalidade e tráfico de drogas: uma discussão psicanalítica acerca da adolescência. In: Psicol Rev. 2012; 18(2): 247-63.

 

a Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência (Faculdade de Medicina, UFMG) em maio de 2015. Autoria de Lisley Braun Toniolo. Orientação: Cristiane de Freitas Cunha. Coorientação: Andréa Máris Campos Guerra.

b Doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social (Faculdade de Educação, UFMG). Autoria de Bruna Simoes de Albuquerque. Orientação: Ana Lydia Santiago.