RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.8)

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Artigo Original

Atitudes dos profissionais de saúde diante da violência contra a mulher

Attitudes the front health professionals to violence against women

Adriana Moreira Serafim; Daisy Silva Reis; Luciene Oliveira Rocha Lopes; Luciana Almeida Santos; Márcia Cristina Ramos de Souza; Regimara Silveira Chaves Oliveira; Maria do Rosário dos Santos; Paula Maia Nogueira; Janaína Passos de Paula; Victor Hugo de Melo

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina - FM, Programa de Pós-Graduaçao Saúde Prevençao de Violência. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Victor Hugo de Melo
E-mail: victormelo@terra.com.br

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Este artigo discute as atitudes e os afetos de profissionais na área da saúde em relação aos atendimentos realizados à mulher vítima de violência. A violência contra as mulheres é uma forma de discriminação e violação de direitos humanos e uma questao de saúde pública. O profissional de saúde deve estar preparado para acolher, abordar, acompanhar, notificar e encaminhar os casos. O objetivo foi analisar as atitudes e as reações afetuosas dos profissionais atuantes no âmbito da saúde de Belo Horizonte diante da mulher em situação de violência. O procedimento metodológico adotado foi a análise de duas questoes de um questionário aplicado a profissionais inscritos no curso de Atualização do Projeto "Para Elas. Por Elas, Por Eles, Por nós". As conclusões revelam melhor preparo desses trabalhadores que já acolhem, abordam e encaminham a mulher vítima de violência, movidos principalmente por sentimentos de preocupação e angústia. Mas a notificação, tao importante para a tomada de decisões na saúde pública, foi uma atitude pouco recorrente nos atendimentos às mulheres vítimas de violência, bem como o seguimento dos casos e os encaminhamentos a delegacias e ao Instituto Médico Legal (IML). Isso sugere a necessidade de mais estudos sobre o tema, com ênfase no desenvolvimento de ações intersetoriais.

Palavras-chave: Emoções; Pessoal de Saúde; Violência contra a Mulher; Saúde da Mulher.

 

INTRODUÇÃO

A violência contra as mulheres é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma forma de discriminação e violação de direitos humanos e uma questao de saúde pública. Apresenta-se de maneira complexa e multifacetada, causa danos à saúde física e mental das pessoas envolvidas, além de comprometer suas famílias e a sociedade.1 No Brasil, ela é considerada um problema de saúde pública e um fenômeno complexo de alta prevalência.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde2, a maior parte das agressões praticadas contra a mulher ocorre, respectivamente, em: domicílios, vias públicas e instituições de saúde, sendo que as mulheres negras e pobres comumente são vítimas fatais.

Denúncias de violência contra as mulheres começaram no Brasil a partir da segunda metade do século XX. Em 2004 foi elaborada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, reconhecendo o problema como uma questao de saúde pública. Mas o modelo de atenção às mulheres em situação de violência ainda opera na lógica reducionista e individualista do modelo biomédico3, quando o necessário seria trabalhar em rede, de forma intersetorial, multidisciplinar e multiprofissional, tendo por premissa a busca pelo empoderamento da mulher e a responsabilização dos agressores. Antes de tudo, é necessário acolher a mulher. E por acolher entende-se o conjunto de medidas, posturas e atitudes dos profissionais de saúde que garantam confiança, segurança e respeito.4

Diante desse cenário, este estudo teve como objetivo analisar as atitudes e as reações afetuosas dos profissionais da rede pública de Belo Horizonte matriculados no curso "Para Elas/UFMG", modalidade de ensino a distância, diante da mulher em situação de violência.

 

ABORDAGEM METODOLOGICA

Trata-se de estudo transversal, de natureza quantitativa, cuja metodologia consistiu de entrevistas semiestruturadas com profissionais da rede de Belo Horizonte matriculados no Curso Para Elas/UFMG, do Projeto "Para Elas/Por Elas, Por Eles, Por Nós" no período 2014 a 2016, utilizando questionário autoaplicável, online, por meio da Plataforma FormSUS.

O questionário foi a opção escolhida neste estudo, por tratar-se de uma técnica de investigação constituída por um conjunto de questoes, cuja finalidade foi alcançar informações acerca de comportamentos, valores, sentimentos, temores e aspirações dos sujeitos pesquisados.5 Como critério de inclusão no banco de dados do projeto foram considerados os seguintes fatores: matrícula no curso EAD, preenchimento completo do questionário e aceitação das questoes descritas no Termo de Consentimento.

Para o desenvolvimento do presente estudo, restringiu-se a utilização de duas questoes fechadas que contemplaram as atitudes e afetos dos profissionais nos casos de violência contra a mulher, são elas: "como você se sente ao atender uma mulher com suspeita ou em situação de violência?" e "se você já atendeu uma mulher em situação de violência, o que foi feito?".

No processo seletivo, optou-se por aplicar o questionário àqueles profissionais atuantes em Belo Horizonte que declararam ter prestado atendimento à mulher na situação supracitada, sendo, portanto, em sua totalidade, uma amostra de 126 respondentes.

O tratamento de análise dos dados foi exportado para Excel e, em seguida, para o Programa SPSS. 19. Utilizou-se a análise descritiva com distribuição de frequência e a análise de correspondência (AC). Trata-se de uma técnica de análise exploratória de dados, adequada para estudar tabelas de duas entradas ou tabelas de múltiplas entradas, levando em conta algumas medidas de correspondência entre linhas e colunas, por meio da qual foram estudadas associações entre atitudes e afetos dos profissionais, diante da atenção à mulher em situação de violência.

 

RESULTADOS

Quanto às atitudes, os resultados revelaram que, dos respondentes que atenderam mulheres em situação de violência, 93% realizaram acolhimento, 88,2% abordaram a situação de violência, 45,3% notificaram e 45,2% fizeram seguimento ambulatorial da mulher.

Relacionado aos encaminhamentos, os resultados mostraram que 61% das mulheres atendidas foram encaminhadas para serviço especializado no município e apenas 18,6% para fora do município. Apenas 53,2% foram encaminhadas para IML ou delegacia, e 73,3% foram encaminhadas à saúde, o que sugere uma falha nas ações intersetoriais dos profissionais.

Quanto aos afetos dos profissionais, 88,4% se sentem preocupados e 66,2% se sentem angustiados. Menos da metade dos profissionais se sente confiante (40,4%) e segura (49,7%), o que sugere a necessidade de mais capacitação na questao apresentada; 41,5 e 25,7% se sentem temerosos e constrangidos, respectivamente. O sentimento de impotência foi mencionado por 58,5%.

As Tabelas 1 e 2 apresentam o mapa de correspondência entre as atitudes e afetos dos profissionais de saúde na agressão à mulher. Para a interpretação da associação entre os níveis dos perfis linha (atitudes: acolheu, abordou, notificou, encaminhou) e dos perfis coluna (afetos: confiante, seguro, preocupado, impotente, angustiado), devem ser analisadas as Tabelas 1 e 2. A Tabela 1, referente às atitudes, revela melhor representação do nível "notificou" na dimensão 2 (em negrito), enquanto os demais níveis são mais bem representados na dimensão 1 (em negrito). A Tabela 2, referente aos afetos, revela melhor representação de todos os níveis na dimensão 1 (em negrito), exceto o nível "angustiado" que contribui mais quando interpretado na dimensão 2 (em negrito).

 

 

 

 

A Figura 1 a seguir apresenta o mapa de correspondência entre as atitudes e afetos dos profissionais de saúde na agressão à mulher.

 


Figura 1 - Mapa de correspondência entre as atitudes e os afetos. Fonte: resultado da pesquisa.

 

Verifica-se forte associação entre os profissionais cujos afetos são de confiança e segurança com aqueles cujas atitudes foram de encaminhar e notificar casos de mulheres vítimas de violência. Observou-se, ainda, que os profissionais preocupados e angustiados associaram-se mais fortemente àqueles que abordaram e acolheram mulheres vítimas de violência. Notou-se que mesmo os profissionais com sentimento de impotência tiveram atitudes de abordar e acolher com associação razoável.

Os dados revelam que os afetos de confiança e segurança estao muito associados às atitudes de encaminhar e notificar ações possíveis apenas se os profissionais estiverem bem capacitados para atender a essa demanda. Os afetos preocupado e angustiado associaram-se às atitudes de abordar e acolher, sugerindo que os profissionais se implicam nos atendimentos realizados.

 

DISCUSSÃO

Há um avanço nas atitudes de acolhimento e abordagem à mulher, mas os números de notificação ainda são baixos, o que prejudica a efetivação de políticas públicas no âmbito epidemiológico e da prevenção. Conforme preconiza o Ministério da Saúde amparado pela lei 10.778, cabe aos profissionais de saúde notificar os casos de violência contra a mulher, identificados durante o atendimento à vítima. De acordo com Garbin et al.6, a notificação estabelece uma conexão entre o campo da saúde e o sistema legal, indispensável para a intervenção eficiente no problema. Além disso, ela oferece subsídios para a composição de um perfil epidemiológico que servirá de amparo para ações de prevenção e combate ao problema.

As baixas porcentagens de seguimento ambulatorial a essa mulher também chamam a atenção para a falha no acompanhamento ao sair do atendimento. Isso pode estar relacionado à falta de implicação do profissional ou à sobrecarga de trabalho que não permite esse tempo para acompanhar essas situações de violência após o encaminhamento.

No estudo de Vieira et al.7 há um desconhecimento sobre o fenômeno da violência e seus diferentes matizes, prejudicando, dessa maneira, a assistência oferecida às mulheres que vivenciam essa problemática. Frequentemente, o profissional não identifica a situação de violência, e quando o faz não se sente preparado para dar a solução ou o encaminhamento adequado. É necessário haver escuta sensível e acolhimento adequado e resolutivo, bem como a formação de equipes multiprofissionais que possibilitem implementação de programas de atendimento às mulheres nessa situação. Esse estudo ainda identificou que grande parte dos encaminhamentos realizados foi para o próprio município. Esse dado pode dizer de um suporte de atenção descentralizado, que já conta com a atenção especializada em sua própria localidade, o que é um grande avanço, pois facilita o acesso da mulher ao serviço.

Apenas pouco mais da metade das mulheres em situação de violência foi encaminhada para setores diferentes da saúde, como delegacias e IML. A eficiência do combate à violência depende de ações integradas com todos os setores da sociedade, inclusive o jurídico.

No estudo de Penso et al.8, as participantes, profissionais da área da saúde, enfatizaram o quanto o trabalho que desenvolvem tornou-as mais sensíveis e como os atendimentos realizados as mobilizaram, despertando uma variedade de sentimentos em relação a essas mulheres em situação de violência. Constatou-se que as emoções presentes nas atuações das participantes são fatores propulsores da ação, bem como a forma de cuidado oferecido ao outro como motivador nessa ordem de demanda. O artigo ainda menciona que o trabalho com o tema da violência gera sentimentos intensos como raiva e dores nas feridas internas de cada pessoa e que por isso o espaço de troca e de escuta se torna uma ferramenta imprescindível.

Os afetos relacionados à preocupação e angústia indicam uma implicação dos profissionais que se veem mobilizados com a situação apresentada. No entanto, o estudo detectou porcentagens baixas de trabalhadores que se sentem seguros e confiantes, mas que, mesmo assim, abordam e acolhem mulheres vítimas de violência.

Vieira et al.7 apuraram que, de maneira geral, na literatura, a violência nas relações de gênero não é contabilizada nos diagnósticos realizados pelos profissionais de saúde, sendo caracterizada como problema de extrema dificuldade para ser abordado. Nota-se que muitas vezes as atitudes dos profissionais são de apoio às mulheres em situação de violência, mas muitos se sentem inseguros no manejo dos casos. Esses autores ainda ressaltam que a literatura mostra que os profissionais de saúde tendem a considerar as questoes de violência como pertinentes às áreas da segurança e justiça, têm medo de se envolverem com o assunto, restringem-se a tratar das lesões físicas e não receberam educação sobre o tema.

Ao contrário do que registraram Vieira et al.7 sobre o desconhecimento por parte dos profissionais sobre o fenômeno, assim como a sua não identificação e consequente não abordagem da mulher vítima de violência, o presente estudo demonstra avanço no cenário atual de atendimento a essas mulheres, concluindo, ao analisar as respostas dos profissionais de saúde, que do total de entrevistados a grande maioria realizou o acolhimento e a abordagem ao tema, o que significa mais reconhecimento do problema9.

A abordagem da violência recebe olhares diferenciados de acordo com a profissão. No estudo de Villela et al.10 em um centro de saúde, os médicos dizem não receberem muito casos de agressão à mulher, enquanto os psicólogos afirmam que a violência está presente na vida de quase todas as usuárias. Isso deixa clara a falta de capacitação dos profissionais de saúde e de trabalho interdisciplinar, com o devido acolhimento realizado por todos os profissionais, preconizado pelo SUS.

 

CONCLUSÕES

Diante da complexidade dos fenômenos que envolvem a violência contra a mulher, percebe-se relativa melhora em algumas atitudes, mas ainda são necessários mais estudos que ajudem no desenvolvimento de ações no âmbito da notificação e do seguimento dos casos. Os afetos dos profissionais devem receber atenção para que se potencializem atendimentos humanizados, integrais e de qualidade, que mobilizam as atitudes dos profissionais diante da vítima de violência. O enfrentamento da agressão contra a mulher deve articular todos os setores da sociedade (educação, social, econômico e jurídico) que juntos devem construir uma rede em que as atitudes não sejam pontuais, mas conectados umas às outras.

 

REFERENCIAS

1. World Health Organization. Violence prevention alliance: conceptual framework. Genova: WHO; 2010. [citado em 2016 fev. 08]. Disponível em: http://www.who.int/violenceprevention/vpa_conceptual_framework.pdf

2. Secretaria Municipal de Saúde (MG). Guia de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência. Belo Horizonte: Projeto Gráfico; 2015

3. Netto LA, Moura MA, Queiroz ABA, Tyrrell MAR, Bravo MDP. A violência contra a mulher e suas conseqüências. Acta Paul Enferm. 2014[citado em 2016 out.10]; 27(5): 458-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v27n5/pt_1982-0194-ape-027-005-0458.pdf

4. Araújo CLO, Abdouni MK, Olibeira FM. Rev Eletrônica Enferm. 2013; 1(4): 20-8.

5. Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo: Atlas; 2008. p. 121.

6. Garbin C, Dias IA, Rovida TAS, Garbin AJI. Desafios do profissional de saúde na notificação da violência: obrigatoriedade, efetivação e encaminhamento. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 20(6): 1879-90.

7. Vieira LB, Padoin SMM, Landerdahl MC. A percepção de profissionais da saúde de um hospital sobre a violência contra as mulheres. Rev Gaúcha Enferm. 2009; 30(4): 609-16.

8. Penso MA, Almeida TMC, Brasil KCT, Barros CA, Brandao PL. O atendimento a vítimas de violência e seus impactos na vida de profissionais da saúde. Temas Psicol. 2010[citado em 2016 nov.10]; 18(1): 137-52. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2010000100012

9. Vieira EM, Perdona GCS, Almeida AM, Nakano MS, Santos MA, Daltoso D. Conhecimento e atitudes dos profissionais de saúde em relação à violência de gênero. Rev Bras Epidemiol. 2009[citado em 2016 ago.13 ]; 12(4): 566-77. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2009000400007&lng=en.

10. Villela WV, Vianna LA, Carneiro LLFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde Soc. 2011[citado em 2016 jul.10]; 20(1): 113-23. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902011000100014.