RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 3

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História da Medicina

Hospital das Clínicas da UFMG: da origem como hospital de ensino à inserção no Sistema Único de Saúde

UFMG Hospital das Clinicas: from the origins as learning hospital to the insertion in the Sistema Único de Saúde/Health System

Mônica Aparecida Costa1; Joaquim Antônio Cesar Mota2; Ricardo Castanheira Pimenta Figueiredo3

1. Médica Sanitarista, Mestre em Medicina - Programa Saúde da Criança e do Adolescente - UFMG
2. Professor associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG
3. Professor associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Mônica Aparecida Costa
R: Camapuã, 303 Alto Barroca
Belo Horizonte - MG CEP: 30430-450

Resumo

Descreve-se neste artigo a história do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais de 1928 a 1998 por intermédio da pesquisa qualitativa com análise documental e entrevistas com lideranças institucionais. A análise da dinâmica de funcionamento do HC/UFMG foi contextualizada a partir das relações com a Faculdade de Medicina, outras instâncias da UFMG e níveis gestores do Sistema de Saúde. Observou-se ao longo desse período o desenvolvimento de arranjos organizacionais caracterizados por diferentes formatos e modelos administrativos, tecnológicos e estruturais, resultantes de processos gerenciais que buscaram compatibilizar diversos interesses e projetos dos atores presentes no cotidiano organizacional em tensa convivência - dirigentes, docentes, corpo técnico-administrativo, médicos-residentes e alunos. Para isso, as diretorias do HC/UFMG definiram estratégias que progressivamente imprimiram modificações significativas no contexto da instituição, administrando numerosas e complexas demandas de assistência, ensino e pesquisa, com permanente escassez de recursos e freqüentes crises financeiras. Internamente, ocorreram transformações dos processos de trabalho no campo gerencial, técnico e do ensino-aprendizagem, assim como da estrutura física e parque tecnológico do HC. Externamente, os novos arranjos produziram novas relações interinstitucionais no cenário universitário desde a administração central às unidades acadêmicas e os níveis gestores do sistema de saúde. Verificou-se com destaque nessa trajetória que a abertura e manutenção do Pronto-Atendimento exigiram investimentos de ordem política, administrativo-gerencial, técnica e financeira da comunidade acadêmica e hospitalar para adequação do HC ao seu novo papel de inserção no Sistema Único de Saúde, impondo uma nova lógica organizacional fundamentada na precedência do cuidado, o que determinou a configuração de novo modelo assistencial.

Palavras-chave: Hospitais de Ensino/história; Hospitais Universitários/história; Sistema Único de Saúde; História da Medicina.

 

INTRODUÇÃO

Relatam-se a origem e o processo de desenvolvimento do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/UFMG) desde a sua criação em 1928 até o ano de 1998, utilizando-se a metodologia da pesquisa qualitativa, com análise documental e entrevistas com lideranças institucionais. O resgate da história do Hospital das Clínicas da UFMG apresentou dificuldades relacionadas à inexistência de um acervo documental referente à origem e evolução dessa instituição de 80 anos, considerando 1928 como sua fundação e início da construção do prédio central. A análise apresentada é resultado de consultas no arquivo documental da Assessoria de Planejamento do Hospital das Clínicas (ASPLAN/HC) e de informações obtidas de comunicação verbal com ex-diretores do HC e integrantes da ASPLAN, além da própria vivência e memória de um dos autores deste trabalho. Foram feitas entrevistas informais com dois ex-diretores do Hospital das Clínicas e um assessor de planejamento.

O principal interesse deste estudo, além do resgate histórico, é contextualizar a dinâmica de funcionamento do HC/UFMG e suas relações com a Faculdade de Medicina (FM), UFMG e o Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da análise da atuação de atores, de forma relevante para o desenvolvimento dos diferentes formatos institucionais.

O Hospital das Clínicas da UFMG até 1998

A história do ensino superior em Minas Gerais inicia-se em 1801, com a criação da primeira Escola Médica do Brasil.1 Segue-se a Escola de Farmácia na cidade de Ouro Preto, a Escola de Minas e a Faculdade de Direito, esta última transferida para Belo Horizonte em 1898, com a mudança da capital mineira. Em 1907, criou-se em Belo Horizonte a Escola Livre de Odontologia e em 1911 a Escola de Medicina, a Escola de Engenharia e o curso de Farmácia, anexo à Escola de Odontologia. Apesar da criação de um curso médico em Minas Gerais em 1801, ele não perdurou mais de quatro décadas, sendo retomado em 1911 pela Sociedade Médico-Cirúrgica de Minas Gerais, com a constituição da Escola de Medicina de Belo Horizonte, com aula inaugural proferida no ano seguinte. Até a década de 1950, a Escola utilizou as enfermarias da Santa Casa como campo de ensino. Em 1920, a partir de um acordo celebrado entre a Escola de Medicina e o Instituto de Assistência e Proteção à Infância de Belo Horizonte, pertencente à Sociedade São Vicente de Paulo, foram concluídas as obras do Hospital São Vicente de Paulo2, transferido efetivamente sob forma de doação à Escola de Medicina, em 1931. No mesmo ano foi inaugurado o Hospital São Geraldo para sede das clínicas oftalmológicas e otorrinolaringológicas no prédio até então ocupado pela Diretoria do Estado da Saúde; e em 1922 foi fundado o Instituto Radium, primeiro hospital oncológico do Brasil, idealizado pelo professor Borges da Costa.3 O conjunto de hospitais da Faculdade de Medicina (Hospital São Vicente de Paulo, Hospital São Geraldo, Instituto Radium) foi denominado Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina em 1955, quando foram iniciadas a ampliação e adaptação do Pavilhão Carlos Chagas como sede da Clínica de Doenças Tropicais e da Biblioteca. Em 1959, foram autorizados o funcionamento do Instituto de Medicina Preventiva e a instalação de um centro de saúde no andar térreo da Escola de Medicina. Em 1967, o Hospital Borges da Costa foi incorporado à UFMG e em 1969 o Hospital Bias Fortes foi cedido à Escola de Medicina pelo governo do estado de Minas Gerais.2

Em 1968, a Reforma Universitária impôs alterações na estrutura orgânica da Universidade, com a substituição do sistema de cátedras pela estrutura departamental e desligamento da Escola de Enfermagem da Faculdade de Medicina. A extinção das cátedras com a criação dos departamentos; e a implantação de processo eleitoral para a escolha das respectivas chefias modificaram as estruturas de poder acadêmico. Houve na Faculdade de Medicina a ruptura do modelo de poder exercido pelos catedráticos e que se caracterizava pela autonomia e gerência sobre a utilização e organização do espaço físico de sua clínica, o estabelecimento das atribuições e tarefas dos assistentes e alunos, a definição do modelo assistencial e de ensino e em relação às intervenções no paciente. O desenho organizacional implantado nos hospitais universitários com a criação dos departamentos reproduziu os mesmos espaços de autoridade e de autonomia, criando serviços na lógica das especialidades e do modelo de medicina tecnológica. O Hospital das Clínicas da UFMG manteve as divergências e conflitos que existiam entre as cátedras, observando-se disputas por leitos e alocação de recursos tecnológicos entre as diversas clínicas, sem uniformidade de modelo assistencial e de ensino entre serviços que compunham o mesmo departamento, explicitando as divisões internas.

O ensino médico foi objeto de críticas e insatisfação por parte de alunos e professores, o que provocou a proposta de reforma curricular, caracterizada pela ênfase na formação do médico generalista, com antecipação e destaque do treinamento prático. Essa mudança foi aprovada em 1974 e implantada a partir de 1975. Houve fusão de disciplinas, organização do ambulatório para funcionamento em dois turnos, adequação do laboratório e do serviço de radiologia, ampliação do quadro de professores a partir da contratação de docentes clínicos com prática generalista e implantação dos ambulatórios periféricos e do internato rural.4,5

Segundo Lemos6, o currículo médico implantado a partir de 1975 apresentou avanços conceituais significativos, rompendo com o paradigma que considerava o paciente como objeto de ensino, despossuído de subjetividade e de autoridade. O deslocamento do eixo do modelo pedagógico para o ambulatório possibilitou também mudança de modelo assistencial, priorizando a abordagem médica do usuário em nível de assistência com mais autonomia e liberdade para se inserir no mundo e manifestar suas necessidades.

Até 1976, o Hospital das Clínicas era vinculado diretamente à Faculdade de Medicina, não possuindo autonomia administrativa, subordinando-se à estrutura de poder acadêmico vigente, constituído inicialmente pelas cátedras e, após 1968, pela composição departamental. Existiam diversos modelos de assistência e de organização institucionais, ordenados de acordo com os interesses de ensino e pesquisa de cada clínica. A integração ao sistema assistencial era difícil e os critérios de internação obedeciam às linhas de pesquisa existentes, disponibilizando também casos ilustrativos para o processo de ensino-aprendizagem que incluíam pacientes com doenças raras e de difícil diagnóstico. As dependências do HC eram ocupadas pelos departamentos e os docentes assumiam a assistência dos pacientes internados nas enfermarias e alguma atividade ambulatorial. Segundo Lemos6, o chefe de cada departamento da Faculdade de Medicina atuava como um diretor do HC, executando orçamento, assumindo encargos da administração de pessoal, de material e serviços, além de se constituir como o responsável pela enfermaria e pelo corpo clínico existente. Os ambulatórios funcionavam como porta de entrada, identificando pacientes para hospitalização. O Hospital das Clínicas possuía uma superintendência administrativa indicada pela Congregação da Faculdade de Medicina auxiliada pelo Departamento de Enfermagem na gerência de recursos humanos vinculados às atividades assistenciais, excluindo-se a gestão dos profissionais médicos e docentes. O Hospital das Clínicas já apresentava dificuldades administrativas e financeiras e possuía um processo de produção da assistência dependente da grade curricular do ensino médico, limitando a participação de alunos de outras unidades acadêmicas da área da saúde.

Em 1976, o HC tornou-se administrativamente independente da Faculdade de Medicina, sendo denominado Hospital das Clínicas da UFMG, com diretoria geral própria escolhida pelo Reitor e um regimento interno específico. O primeiro Plano Diretor foi marcado pela adoção do Modelo de Cuidados Progressivos ao Paciente, elaborado a partir de proposta teórica originária da Organização Pan-americana de Saúde e, até então, não implantada em nenhum hospital universitário. Nesse mesmo ano, foi constituído o Conselho Administrativo, com presidência exercida pelo Diretor da Faculdade de Medicina.

Esse sistema de cuidados progressivos buscou a integração do Hospital das Clínicas com os serviços de saúde da rede pública, enfatizando a assistência ambulatorial e reservando a hospitalização para casos agudos e graves que exigissem cuidados contínuos. Foi preconizada uma administração unificada das atividades de ensino, pesquisa e assistência, com processo decisório mais horizontalizado e especificidade na definição das competências. Buscou ainda otimização dos recursos existentes e redução dos custos, valorizando critérios de eficiência gerencial. Propôs organizar as atividades assistenciais conforme o perfil de necessidades dos pacientes, diferenciando cuidados básicos, intermediários e intensivos em relação à complexidade do trabalho desenvolvido pela enfermagem. Esse modelo, entretanto, teve existência efêmera, com duração de quatro meses. Os obstáculos para a sua implantação e consolidação foram decorrentes da falta de um referencial externo de sustentação e problemas intrínsecos relacionados à resistência do corpo docente às mudanças propostas, por envolverem ameaça de perda de poder e de autonomia em relação à gestão dos leitos e dos planos de cuidado.6 O Sistema de Cuidados Progressivos foi a primeira tentativa concreta de se ordenar a organização e funcionamento do Hospital das Clínicas com base na da definição de um modelo de atenção à saúde baseado no perfil de necessidade dos pacientes, segundo uma concepção orientada pelos princípios da reforma curricular. Esse modelo foi construído num contexto institucional complexo, marcado por mais autonomia política em relação à Faculdade de Medicina, mas dependente da atuação dos professores, alunos e médicos residentes para o desenvolvimento das atividades e para a implementação das mudanças propostas.

Pelo convênio assinado em 1981 entre o Ministério da Educação e o Ministério da Previdência e Assistência Social, foram estabelecidas novas bases de inserção e remuneração dos hospitais universitários, condicionando a receita à produção de serviços assistenciais. Introduziu-se, de forma compulsória, nova lógica ordenadora dos processos gerenciais, caracterizados pela existência de uma burocracia encarregada da manutenção do funcionamento do Hospital num cenário complexo, constituído, por um lado, pelo poder adocrático (ad hoc: para esse fim e kratos, força, poder). Essa forma de organização foi baseada em diversas unidades de trabalho, de composição, estrutura e dinâmica de funcionamento flexível e vinculado aos desafios e necessidades de cada momento. Foi exercido pelos docentes da Faculdade de Medicina cuja inserção estava marcada pelo compromisso com as demandas de ensino e pesquisa e pela participação crescente dos servidores técnico-administrativos vinculados à Diretoria Administrativa e responsáveis pela continuidade do funcionamento institucional por meio do provimento de condições materiais e suporte técnico e administrativo.

Em 1986, o Estatuto da UFMG definiu o Hospital das Clínicas como Órgão Suplementar vinculado diretamente à Reitoria, oficializando sua desvinculação administrativa da Faculdade de Medicina. Nesse mesmo ano foi criada a Vice-Diretoria do Hospital das Clínicas e em 1987 foi acrescentado o setor de Emergências Médico-Cirúrgicas não-traumatológicas aos Setores Operativos do Hospital. Em 1989, foi criada a Coordenadoria Geral de Enfermagem, subordinada diretamente à Vice-Diretoria para realizar a normatização e acompanhamento das atividades desenvolvidas pela enfermagem, participando, junto com a área de Recursos Humanos, dos processos de dimensionamento, seleção, remanejamento e capacitação de profissionais de enfermagem. A Assessoria de Planejamento (ASPLAN), criada pelo Regimento de 1976, tornou-se local estratégico para a formulação de projetos mais integralizadores que buscavam articular um modelo de atenção à saúde e de gestão, em ambiente com dicotomia entre as políticas assistenciais e as educacionais, tentando preservar a autonomia e poder dos docentes, criando estratégias inovadoras para gerenciar os conflitos decorrentes das inevitáveis tensões entre atores institucionais atuantes segundo interesses e racionalidades tão diferenciados.

Em 1990, foi instituída uma Comissão para elaborar proposta de novo modelo para o HC, capaz de promover internamente mais integração dos serviços e das atividades desenvolvidas e melhor adequação das demandas assistenciais às necessidades de ensino e pesquisa das várias unidades acadêmicas do campo da saúde e remuneração adicional aos professores que atuavam na organização. O modelo buscava mais integração do HC ao Sistema Único de Saúde, além de mais participação do estado e município no financiamento institucional.7

O modelo resultante propôs a criação de Unidades de Produção Administrativas e Assistenciais. Como marco conceitual importante, tal proposta buscou integrar o desenvolvimento das atividades de atenção à saúde, ensino e pesquisa dos ambulatórios e das enfermarias, constituindo uma equipe multiprofissional única e uma chefia geral auxiliada por subchefe médico, administrativo e de enfermagem para cada divisão assistencial. A proposta foi apresentada e debatida no Primeiro Seminário do Hospital das Clínicas de 1992. Houve pouca participação de docentes da Faculdade de Medicina, mas presença significativa de professores de diversas unidades acadêmicas da UFMG, deputados, vereadores, representantes das secretarias estadual e municipal de saúde, estudantes da área da saúde, convidado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, além da Diretoria e Assessoria de Planejamento do HC. Em 1992, o Conselho Administrativo aprovou o novo modelo organizacional do Hospital das Clínicas e as divisões previstas foram implantadas, além da institucionalização do pagamento de Serviços Profissionais (SP) aos docentes da Faculdade de Medicina envolvidos em atividades assistenciais, conforme valores calculados a partir da tabela de remuneração dos procedimentos hospitalares e ambulatoriais do Ministério da Saúde.7

No final de 1994, o diagnóstico institucional apontou como principais problemas do HC o elevado grau de centralização do processo decisório, ausência de planejamento e de mecanismos de controle, inexistência de informações essenciais, falta de motivação dos servidores e baixa produtividade, sazonalidade da produção associada ao calendário acadêmico, desequilíbrios financeiros e problemas de faturamento. Como estratégia de enfrentamento de tais dificuldades, a nova diretoria empossada em junho de 1994 propôs o "Projeto de Descentralização Administrativo-Financeira" baseado na criação das Unidades Operativas em todas as clínicas do HC. Para testar a eficácia e a validade da proposta, iniciou sua implantação piloto na Divisão Assistencial Pediátrica, escolhida pelo seu elevado grau de organização. As questões prioritárias propostas buscavam descentralizar o processo de gerenciamento de recursos humanos, materiais, orçamentários e financeiros e estabeleciam metas de qualidade e produtividade, criando alternativas para aumento das receitas, redução do custo e do desperdício, além de destacar a necessidade do desenvolvimento de políticas motivacionais para os trabalhadores da instituição e da construção de sistemas de informações gerenciais estratégicas.8

A realização do projeto-piloto na Divisão Assistencial Pediátrica ocorreu no período de outubro de 1994 a junho de 1995, quando foram realizadas amplas reuniões com participação da Diretoria do HC, chefes e profissionais do Departamento e Serviço de Pediatria, para identificação e discussão dos principais problemas da unidade, utilizando-se um conjunto de instrumentos gerenciais elaborados para sistematizar o diagnóstico das dificuldades selecionadas e subsidiar as soluções. O projeto-piloto foi avaliado de forma positiva, sendo reafirmada a pertinência de se adotar uma administração participativa com subordinação dos interesses individuais e corporativos aos interesses gerais das unidades, definição de metas e utilização de um método de planejamento baseado na solução de problemas. Como conclusão, propôs-se a ampliação do modelo para o conjunto de clínicas da instituição.8

Em novembro de 1995, entretanto, ocorreu crise financeira com redução de leitos e demissão de grande contingente de trabalhadores celetistas contratados pela Fundação de Desenvolvimento de Pesquisa da UFMG (FUNDEP). A crise foi agravada por problemas de relacionamento político-institucional com a Reitoria. Esse conjunto de fatos levou à renúncia da diretoria do Hospital das Clínicas e à interrupção da implantação do novo modelo gerencial. Uma nova consulta eleitoral à comunidade universitária do Campus Saúde foi feita no primeiro semestre de 1996 e nova diretoria foi empossada. Curiosamente, já em 1920 o relatório da Comissão de Contas da Faculdade de Medicina afirmava que "nossa faculdade se acha novamente a braços com uma crise pecuniária" por conta de despesas imprevistas acarretadas com a adaptação, montagem e instalação do Hospital São Geraldo.3

Desde 1994, o município de Belo Horizonte estava habilitado na gestão semiplena, responsabilizando-se pela gerência do total de recursos financeiros gastos com a prestação de serviços de saúde na cidade, implantando processos de controle e avaliação junto aos prestadores públicos e privados contratados ao Sistema Único de Saúde. Tal fato estreitou as relações entre o Hospital das Clínicas e o gestor municipal. Em 1996, com a persistência da crise financeira e com o fechamento de leitos e redução dos serviços ambulatoriais do HC, foi celebrado convênio entre a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/Secretaria Municipal de Saúde e a Universidade Federal de Minas Gerais/Hospital das Clínicas, criando-se a Unidade de Pronto-atendimento (PA) do Hospital das Clínicas e disponibilizando-se recursos financeiros para adequação da área física e compra de materiais e de equipamentos. O PA desencadeou processos significativos de reorganização institucional relacionados especialmente à inserção e envolvimento dos docentes com as atividades assistenciais de urgência/emergência, adaptação da estrutura de apoio diagnóstico e terapêutico com o novo perfil de pacientes, ampliação do número de leitos e de salas de cirurgia, além da contratação de grande contingente de profissionais médicos e de enfermagem para a nova unidade.

Esse processo de institucionalização do PA foi progressivo e enfrentou dificuldades relacionadas às diferentes resistências dos atores que compunham a comunidade hospitalar, com tensões freqüentes no cotidiano institucional. A manutenção do funcionamento do PA impôs nova racionalidade constituída de novos tempos e novos processos de trabalho, de fluxo e de comunicação entre as diversas áreas e corporações. Inicialmente, como uma unidade estranha ao contexto institucional, o PA se consolidou como força instituinte capaz de provocar rupturas, reordenando a dinâmica organizacional a partir da assistência. De forma importante, os docentes da Faculdade de Medicina apresentaram distintos graus de reconhecimento do PA como campo de sua prática docenteassistencial. Notadamente, houve mais envolvimento de alguns departamentos (Pediatria, Cirurgia e Ginecologia-Obstetrícia) e de algumas especialidades da Clínica Médica, com participação dos professores na preceptoria junto aos médicos-residentes e atuação como médicos-assistentes nos plantões da Unidade. De outro modo, houve resistência de algumas clínicas para legitimar o PA como unidade do HC. Essa situação provocou dificuldades na relação desses serviços (ambulatórios e enfermarias) com o PA. Por um lado, desenvolveu-se uma prática utilitária para agilização de propedêutica de pacientes acompanhados ambulatorialmente e por outro, não houve comprometimento com o seguimento dos doentes encaminhados para o PA em situações de intercorrência, resultando numa descontinuidade efetiva do cuidado. Apesar dessas questões, houve consolidação interna e externa do PA como a principal porta de entrada do HC, constituindo-se uma referência fundamental para o sistema de urgência e emergência clínica e cirúrgica não-traumatológica da cidade e região metropolitana, atendendo pacientes de média e alta complexidade.

Os documentos disponíveis da gestão 1996-1998 demonstram identidade com as diretrizes e estratégias definidas no projeto de criação das unidades de produção, divisões assistenciais e administrativas, apostando na integração com o SUS e no fortalecimento do papel de formação de recursos humanos para a área da saúde, com ampliação dos estágios para outras unidades acadêmicas da UFMG e para profissionais da rede pública em eventos de educação continuada, além do aumento de pesquisas geradoras de novos conhecimentos para a promoção da saúde. Como principal orientador do processo de gestão, destaca-se a necessidade de adequação da estrutura organizacional do HC, implantando um processo de planejamento e gestão capaz de integrar os diversos setores existentes a partir da descentralização administrativo-gerencial, com definição de responsabilidades e compromissos com a missão e objetivos institucionais.9

Em 1997, a crise financeira se agravou e houve grande mobilização da sociedade, da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte e da comunidade universitária em defesa do Hospital das Clínicas. No segundo semestre de 1997, foi feita grande mobilização institucional, com ampla participação de docentes, funcionários técnicos-administrativos, médicos-residentes, estudantes e representantes dos usuários no sentido de se construírem alternativas para a crise do HC, resultante do somatório de fatores diversos relacionados ao contexto nacional do papel e financiamento dos hospitais universitários e à dinâmica interna de organização e funcionamento da instituição. Nesse cenário de crise, foi realizado em maio de 1998 o III Seminário do HC. Segundo o acervo documental consultado, não existiu Seminário do HC antes de 1992 e entre 1992 e 1998. Corretamente, o de 1992 é o I Seminário do HC e o de 1998 é o II Seminário. Entretanto, foram mantidas as numerações originais contidas nos Relatórios e documentos oficiais. Apesar de debates intensos sobre a precedência do ensino ou da assistência, definiu-se a missão do HC como "desenvolver eficaz e eficientemente e de forma equilibrada a formação e a capacitação de recursos humanos e a pesquisa na área da saúde, integrando-as com a assistência; responder às necessidades de saúde da população e, inserido no Sistema de Saúde do Estado de Minas Gerais, constituir-se como referência para áreas específicas".10

Como pressuposto para a criação do modelo assistencial e pedagógico, o III Seminário afirmou que a assistência de qualidade representa fator determinante para ensino de qualidade, destacando que o cuidado resulta da articulação entre os papéis de cada setor de produção com a missão institucional. O HC foi definido como unidade de referência secundária, terciária e quaternária para o Sistema Único de Saúde, para a realização de procedimentos ambulatoriais e hospitalares de média e alta complexidade, restringindo a atenção primária ao desenvolvimento de projetos especiais vinculados ao ensino. Reafirmou-se a porta de entrada preferencial pelo PA e ambulatórios e propôs-se o funcionamento ininterrupto desses ambulatórios e enfermarias do Hospital das Clínicas de forma desvinculada do calendário de atividades pedagógicas, além da interação dos alunos de graduação, pós-graduação e capacitação técnica profissional com o paciente/família, sob supervisão dos docentes e dos funcionários do HC, num regime de treinamento em serviço, tomando a estrutura, função e gestão dos diversos setores como objeto de ensino e pesquisa. Defendeu-se também a atuação precoce do estudante, abrangendo a totalidade da clientela atendida.10

Uma questão de destaque no III Seminário do HC foi a discussão do modelo organizacional baseado na criação das Unidades Gestoras compreendidas como a menor unidade hospitalar com autonomia de atuação e de gestão de recursos humanos, físicos, materiais, equipamentos e acadêmica, resultante da agregação de setores com afinidade de produtos ou serviços. Elegeu-se a descentralização do processo decisório, do planejamento e da gestão como a estratégia principal para promover o envolvimento e comprometimento dos diversos atores com os objetivos do HC, de forma a propiciar o desenvolvimento institucional e o crescimento auto-sustentado.10

Como princípios do novo modelo gerencial, defendeu-se a elaboração coletiva de um projeto institucional a ser implementado a partir de gerência participativa baseada no estabelecimento de compromissos e de co-responsabilização com os objetivos institucionais, com ênfase no processo de avaliação de resultados e satisfação de clientela, na transparência da gestão e administração de recursos, na democratização das informações e na comunicação horizontal. Propôs-se que as unidades gestoras construíssem planos de ação, compatibilizando missão específica com a institucional, pelo processo de planejamento participativo e de acompanhamento de resultados. Na área de recursos humanos, recomendou-se a elaboração de política de desenvolvimento pessoal e profissional baseada na valorização das equipes e constituída por um conjunto de diretrizes. Salientou-se a necessidade de se desenvolver política de avaliação de desempenho centrada no trabalho coletivo e no planejamento geral, processos de capacitação permanente do corpo técnico e gerencial, investimentos institucionais para melhorar a qualidade de vida no trabalho e de se implementar em estratégias de seleção de pessoal com perfil adequado às necessidades dos serviços.10

Em relação à gestão financeira, o Relatório do III Seminário7 salientou a dependência do quantitativo de receitas obtidas com o faturamento dos serviços assistenciais prestados ao Sistema Único de Saúde, especialmente resultante das Autorizações de Internação Hospitalar e do incentivo do Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa Universitária. Destacou, ainda, as freqüentes crises enfrentadas pela instituição ao longo da sua existência, com sistemáticas reduções de leitos e solicitação de empréstimos à Reitoria da UFMG, acumulando uma dívida com oscilações históricas. Como alternativas principais, foram propostas ampliações do atendimento a pacientes dos planos de saúde, clientela particular e usuários do SUS, especialmente na alta complexidade, diversificação das fontes de financiamento para captação de recursos por meio de parcerias com empresas privadas e implementação de políticas de doação e celebração de convênios com instâncias governamentais.

O III Seminário significou um marco no processo de definição política e de planejamento do HC, a partir da mobilização dos diversos agentes reunidos em decorrência da crise que ameaçava a integridade institucional, colocando em risco a sua manutenção e funcionamento. Na verdade, tratavase de uma crise que extrapolava os indicadores financeiros e que possibilitou a construção coletiva de um projeto capaz de conferir direcionalidade política e operacional, segundo acordos e consensos orientados para o objetivo comum de dar viabilidade ao HC. Como resultado de um processo de agir comunicativo, referenciado no encontro de diferentes racionalidades, as diretrizes e recomendações aprovadas possibilitaram a incorporação progressiva, no imaginário institucional, de valores e princípios fundamentais para a construção de um novo HC. Explicitaram-se novas marcas, novos desafios para o hospital, identificado, agora, como um hospital onde a produção do cuidado e do ensino ocorre de forma indissociável, em processos entrelaçados que exigem mais plasticidade e adesão dos diversos atores institucionais. O processo coletivo destacou, ainda, a importância do planejamento como tecnologia de gestão para produzir um projeto referenciado no sistema de valores comuns.

 

CONCLUSÃO

As várias diretorias do Hospital das Clínicas elaboraram planos diretores que buscaram compatibilizar as diversas racionalidades e sistemas de poder existentes: a racionalidade adocrática, associada à Faculdade de Medicina para viabilização do projeto acadêmico segundo o modelo hegemônico de medicina tecnológica; a racionalidade profissional, vinculada especialmente à categoria médica para manutenção do exercício de poder dominante no âmbito institucional; e a racionalidade normativa, exercida pela burocracia para manutenção do HC. Para isso, definiram estratégias que progressivamente imprimiram modificações significativas no âmbito organizacional, administrando numerosas e complexas demandas de assistência, ensino e pesquisa, com permanente escassez de recursos e freqüentes crises financeiras enfrentadas historicamente com a redução do número de leitos ativos.

Como resultado, verificou-se, ao longo do tempo, a produção de novos arranjos organizacionais caracterizados por diferentes formatos e modelos administrativos, tecnológicos e estruturais, que transformaram processos de trabalho no campo gerencial, técnico e do ensino-aprendizagem, assim como a estrutura física e o parque tecnológico do HC, com produção de novas relações interinstitucionais no cenário universitário da reitoria e unidades acadêmicas como nos níveis gestores do sistema de saúde.

Como destaque desse processo evolutivo, a abertura e manutenção do PA provocaram mudanças profundas no modelo assistencial e organizacional do HC, desencadeando modificações na estrutura de poder vigente, nos sistemas de comunicação entre ambulatórios, unidades de internação e rede pública e no perfil de atividades assistenciais desenvolvidas, democratizando o acesso ao atendimento de urgências não-traumatológicas tanto para pacientes vinculados aos ambulatórios do HC como usuários externos. A institucionalização do PA exigiu investimentos de ordem política, administrativo-gerencial, técnica e financeira da comunidade acadêmica e hospitalar para a adequação do hospital ao novo papel e inserção no SUS, impondo nova lógica organizacional fundamentada na precedência do cuidado.

Apesar dos avanços observados nos últimos anos, a temática institucional dominante contém questões abordadas ao longo de toda a história do HC, revestidas de roupagem nova, mas que se referem ao que funda, ao que dá sentido a essa valiosa e instigante instituição. E que exigem, pelas contingências do panorama externo e pela evolução da dinâmica interna, novas estruturas de poder, novos sistemas de comunicação, novas atividades, formatando, em continum, novos Hospitais das Clínicas da UFMG.

 

REFERÊNCIAS

1. Pieruccetti F. Em Minas: O início do ensino médico no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 1992;2(3):191-4.

2. Salles P. Notas sobre a história da medicina em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Edições Cuatira; 1997.

3. Pires A. Faculdade de Medicina de Bello Horizonte. Subsídios documentos para a história da fundação da mesma. Bello Horizonte: Imprensa Official de Minas; 1927.

4. Ferreira RA. A Pediatria da UFMG: inserção na mudança do ensino médico implantada em 1975 e sua relação com o saber (paradigma científico) e a prática médica [tese]. Belo Horizonte(MG): Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2000.

5. Correa EJ, Gusmão SNS. 85 anos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Coopmed; 1997. 210 p.

6. Lemos JMC. História do Hospital das Clínicas. In: Correa EJ, Gusmão SNS, Organizador. 85 anos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Coopmed; 1997. p.136-45.

7. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Relatório Final da II etapa do Seminário "Análise do modelo assistencial do hospital das clínicas e suas conseqüências para o ensino, pesquisa extensão e administração". Belo Horizonte: Hospital das Clínicas da UFMG; 1992. 40 p. Mimeografado.

8. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Projeto de Gestão. Belo Horizonte: Hospital das Clínicas da UFMG; 1995. 62p. Mimeografado.

9. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Plano Diretor 1996-1999. Belo Horizonte: Hospital das Clínicas da UFMG; 1996. 29p. Mimeografado.

10. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. III Seminário do Hospital das Clínicas: Relatório Final. Missão e Relações Intra e Inter Institucionais. Estrutura Organizacional e gerencial. Financiamento. Modelo Assistencial e Pedagógico. Sistema de Recursos Humanos. Belo Horizonte: Hospital das Clínicas da UFMG; 1998. 113 p. Mimeografado.