RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26 e1800 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20160100

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Artigo Original

Dificuldades dos agentes comunitários de saúde na prática diária

Difficulties of the communitarian agents of practical health in the daily one

Angélica Maria de Almeida1; Bethania Rodrigues Machado2; Fernanda Marcelino de Rezende e Silva3; Karla Amaral Nogueira Quadros4

1. UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG; Hospital Santa Lúcia de Divinópolis/MG. Divinópolis, MG - Brasil
2. UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG; Hospital Sao Joao de Deus de Divinópolis/MG. Divinópolis, MG - Brasil
3. Escola de enfermagem da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais; Vigilância Epidemiológica de Araújos/MG; UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG. Divinópolis, MG - Brasil
4. UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG; Prefeitura Municipal de Divinópolis/MG; UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG. Divinópolis, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Karla Amaral Nogueira Quadros
E-mail: kanq@bol.com.br; kquadros@divinopolisuemg.com.br

Recebido em: 04/08/2015.
Aprovado em: 06/01/2017.

Instituiçao: Universidade Estadual de Minas Gerais - Unidade de Divinópolis/MG. Divinópolis, MG - Brasil.

Resumo

INTRODUÇÃO: A função de Agente Comunitário de Saúde (ACS) foi regulamentada como profissão, sendo de cunho preventivo e de promoção da saúde junto à comunidade, por meio de ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas.
OBJETIVO: Investigar as principais dificuldades e limitações que os ACS encontram em suas atividades.
MÉTODOS: Estudo de caráter qualitativo, no qual a coleta de dados se deu por meio de entrevista semiestruturada com 17 ACS de cinco Estratégia de Saúde da Família (ESF) e um Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS) de Divinópolis (MG).
RESULTADOS: Percebeu-se que a sobrecarga do ACS, a desvalorização profissional e a falta de interação da equipe são dificuldades sentidas pelos ACS e que essas dificuldades às vezes são até discutidas, mas, na maioria dos casos, não são resolvidas.
CONCLUSÕES: A pesquisa ressaltou a importância da interlocução entre a equipe na tentativa de resoluções dos problemas, conferindo credibilidade à população e valorização do profissional ACS.

Palavras-chave: Saúde Pública; Serviços de Saúde Comunitária; Assistência Integral à Saúde.

 

INTRODUÇÃO

Desde 1988, com a Constituição Federal e a criação do Sistema Unico de Saúde (SUS), desenhou-se uma nova proposta conceitual para a saúde e um novo modelo de organização dos serviços de saúde no país. A saúde passa a ser concebida como um direito de todos e dever do Estado, no qual a implantação de um novo modelo de assistência fez-se necessária, tendo em vista a incorporação da proposta de vigilância em saúde, em suas ações de prevenção de doenças e agravos e promoção de saúde, atuando, principalmente, por meio de atividades educativas coletivas e de visitas domiciliares.1,2

Desta forma, surge, em 1991, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) para financiar a equipe de agentes comunitários (ACS), que, em 1994, juntar-se-ia ao Programa de Saúde da Família (PSF), formando a base para a consolidação da Estratégia de Saúde da Família (ESF).3 Tal proposta é endossada e reafirmada pela Política Nacional de Atenção Básica, que apresentou uma revisão e reelaboração das diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e para a Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS).2

A função de Agente Comunitário de Saúde (ACS) foi regulamentada como profissão, pela Lei nº 10.507, de 10 de julho de 2002, sendo caracterizada pelo exercício de atividades de cunho preventivo e de promoção da saúde junto à comunidade, por meio de ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, desenvolvidas atentando-se às diretrizes e aos princípios do SUS e sob a supervisão do gestor local de saúde.4

O Agente Comunitário de Saúde é o responsável pela ligação entre os serviços de saúde e a comunidade. Ele faz parte das equipes da ESF, devendo ser, conforme a Portaria 2.488/2011, acompanhado por toda a equipe de saúde da ESF, sendo esta responsável pelo planejamento, gerenciamento e avaliação das ações executadas por este profissional.5

A primeira equipe de Saúde da Família foi implantada em Divinópolis, na zona rural comunidade Buriti, em agosto de 1996, e contava com médico, enfermeira, assistente social, psicólogo, dentista, técnico de higiene dental e técnico de enfermagem.6 Somente em 1998, com a criação do Plano de Cargos, Carreiras e Salários do município, é que houve a contratação do ACS.6

As pessoas que desejam ser ACS necessitam ter 18 anos, residir na área, ser concursadas, ter Ensino Fundamental completo e ter concluído, com aproveitamento, o curso de qualificação básica, para a formação de Agente Comunitário de Saúde.

O ACS residir sob sua área de abrangência implica em bom conhecimento dos problemas da comunidade, e espera-se que este profissional tenha ou consiga criar um vínculo de confiança, nos aspectos sociais, econômicos e culturais dos indivíduos.7

São profissionais encarregados de motivar a população e promover ações de melhoria da capacidade do autocuidado para a saúde. Sabendo-se dessa importância, buscou-se investigar as principais dificuldades ou limitações que os Agentes Comunitários de Saúde de Divinópolis vivenciam no desenvolver de suas atividades cotidianas.

Entende-se que este estudo poderá contribuir positivamente no processo de reflexão acerca das estratégias empregadas com vistas à melhoria na prestação do cuidado, consolidação da proposta do vínculo e satisfação entre profissional ACS e comunidade, possibilitando a sistematização da assistência, dando margem a mais estudos nesse campo e reafirmando as bases da ESF e do SUS.

 

MÉTODOS

Pesquisa qualitativa, descritiva, exploratória, com 17 dos 92 ACS de Divinópolis. A pesquisa do tipo qualitativa é exploratória e estimula o pesquisador a construir hipóteses, ter maior familiaridade com o problema e aperfeiçoamento das ideias; é um método flexível, pois pode, entre outros, ser obtida por narrativas, perguntas abertas e informações subjetivas.8

A delimitação da coleta dos dados foi feita por amostragem por saturação, o que permite a tomada de informações até o momento em que se tornaram repetitivas, não sendo relevantes à pesquisa.9

Divinópolis tem uma população de 213.016 habitantes.9 Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), o município conta com 14 Centros de Saúde, 20 Estratégias de Saúde da Família e duas EACS. De acordo com a base de dados do DATASUS de 2014, as equipes de ESF em Divinópolis oferecem 24,33% de cobertura populacional, somando as duas Equipes de Agentes Comunitários de Saúde (EACS), totalizando uma cobertura populacional de 30,15%.10

O projeto desta pesquisa foi encaminhado, mediante autorização da Secretaria Municipal de Saúde de Divinópolis, ao Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI), mantenedora do Instituto de Ensino Superior e Pesquisa (INESP). A pesquisa respeitou os princípios éticos em pesquisa segundo as normas e diretrizes da Resolução 466/12.11

Após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da FUNEDI (Protocolo de Pesquisa sob nº 851.146), e depois de os ACS terem lido, concordado e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, procedeu-se às entrevistas, que foram gravadas, seguindo um roteiro semiestruturado, sendo realizada a entrevista individualmente com cada participante em local reservado dentro da Unidade de Saúde, com horário agendado previamente por telefone.

A vantagem da entrevista é que ela permite maior facilidade de acesso aos diversos respondentes e uma maior flexibilidade na aplicação das questoes. O roteiro semiestruturado permite que o entrevistador e o entrevistado discutam pontos que sejam pertinentes ao objetivo geral da pesquisa quanto ao desvelamento da realidade.12

Como critério de inclusão, optou-se pelos ACS que tinham no mínimo seis meses de trabalho por já terem conhecimento de sua população/área e do seu trabalho na ESF. O critério para exclusão foram os ACS que estavam de férias, de licença médica, afastados por outros motivos, quem não quis participar e aqueles com os quais não foi possível realizar o agendamento por telefone.

Os sujeitos do estudo foram identificados com as iniciais ACS, seguidos da numeração crescente iniciada pelo número 1, de acordo com a ordem de realização das entrevistas, assegurando, assim, o sigilo dos participantes e o rigor aos aspectos éticos e legais da pesquisa.

Desta forma, indagou-se: Qual a dificuldade ou a limitação sentida por você para executar seu trabalho diário? E como os problemas e situações trazidos pelos ACS são discutidos e/ou resolvidos dentro da sua equipe de trabalho? As respostas gravadas foram posteriormente transcritas e depois categorizadas.

Para o início das entrevistas, foram agendadas, aleatoriamente, cinco ESF e um PACS, sendo que há um total de 33 ACS nestas unidades. Destes 33 ACS, segundo a metodologia por saturação dos dados,9 encerram-se as entrevistas com 17 ACS, devido ao fato de os depoimentos se mostrarem repetitivos, não sendo mais relevantes à pesquisa.

A coleta de dados teve duração de sete dias, e a amostra representa 18,47% do total de ACS no município.

As narrativas coletadas dos sujeitos foram analisadas de acordo com o método de Análise de Conteúdo, que tem como objeto a linguagem e que trabalha a palavra prática, viabilizando a percepção das mensagens emitidas pelo sujeito da pesquisa, possibilitando perceber o agrupamento de características específicas.13

A Análise de Conteúdo proposta é organizada em três polos cronológicos, que são: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.13

A pré-analise é a fase da organização. É nessa fase que ocorrem a escolha dos documentos e a elaboração de indicadores que fundamentam a interpretação final. A exploração do material consiste na codificação dos dados a partir das unidades de registro. No tratamento e interpretação dos resultados, se faz a categorização, que é a classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função das características comuns.

Utilizou-se, especificamente, a análise temática, que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compoem a comunicação e cuja presença ou frequência em que aparecem pode significar algo para o objetivo escolhido.13

Análise dos dados

Dos 17 ACS entrevistados, dois eram do sexo masculino, verificando-se, desta forma, o predomínio de mulheres exercendo essa atividade. A idade dos ACS variou de 23 a 56 anos, sendo que a faixa etária predominante foi de 35 a 50 anos.

No quesito escolaridade, todos tinham o Ensino Médio completo, moravam em casa própria e tinham renda familiar em torno de três salários mínimos.

O tempo de atuação como ACS variou de 2 a 14 anos. Durante as entrevistas, ficou evidente que os ACS gostam da profissão, tentam atender a comunidade da melhor maneira possível e sabem da sua importância como elo entre a ESF e a comunidade.

Após a transcrição das entrevistas, procedeu-se à análise. A análise das falas é um processo exaustivo, no qual repetidas vezes ouvem-se as gravações para, entao, serem formadas as categorias que são organizadas por similaridade de respostas - esta é a categorização, que trabalha os elementos e as ideias, agrupando-os em torno de um conceito.14 Deste modo, apreenderam-se três categorias por semelhança e, dentro destas, suas subcategorias. Por diferenciação, apreendeu-se a capacitação como categoria única (Quadro 1).

 

 

Categoria I - A sobrecarga do ACS

Para o desenvolvimento do trabalho, o ACS está sujeito a vários desafios, por ter de lidar diretamente com os problemas sociais e de saúde da população sob sua responsabilidade.15 Desta forma, a sobrecarga de trabalho do ACS foi evidenciada sob vários aspectos, e o mais citado pelos participantes da pesquisa foi a Descaracterização do serviço, na qual os ACS realizam trabalhos de Agentes Administrativos, o que se observa nas falas:

"... é ter que desenvolver todo tipo de trabalho da unidade, que não é competência do ACS, e toda essa demanda de serviço acaba sobrecarregando ele entao, não deixando ele desenvolver o seu trabalho no dia-a-dia de visitas domiciliares e acompanhamentos da família, por ter que ficar na unidade, por falta de profissionais que cuidam da unidade, é isso, é o maior problema que eu acho... cada serviço que chega que é da unidade de saúde ele é imposto para o ACS como se o ACS não tivesse um serviço a cumprir, como se o ACS fosse um à-toa que tivesse, sei lá, não tivesse serviços a cumprir..." (ACS 2).

"... a gente realiza muito trabalho administrativo dentro da unidade, fica muito preso, dentro da unidade é... entao, assim, tem a cobrança de cobertura, né, de visita domiciliar que a gente tem que cobrir os 95% das famílias cadastradas na nossa microárea, mas a gente tem que cobrir essa parte administrativa que a gente não tem ninguém pra realizar". (ACS 15).

Esses trechos evidenciam a Descaracterização do serviço a que os ACS estao submetidos dentro da Unidade de Saúde. Na Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011, anexo I, que trata das atribuições específicas do Agente Comunitário de Saúde, parágrafo VIII, é permitido ao ACS desenvolver outras atividades nas unidades básicas de saúde, desde que vinculadas as suas atribuições. Logo, fica evidente que o trabalho desenvolvido pelos ACS na unidade foge da descrição da portaria que regulamenta suas atribuições e que são: estar em contato permanente com as famílias para desenvolvimento de ações educativas, com vistas à promoção da saúde, prevenção das doenças e ao acompanhamento das pessoas com problemas de saúde.2

Existe, em outro estudo, relato sobre a existência de uma escala pré-definida, para que o ACS auxilie nas atividades dentro da unidade. Esse fato pode sobrecarregar e ser motivo de estresse no ACS, pois ele deixa de realizar a visita domiciliar, que é sua atividade principal, e sofre cobrança, pela supervisão, dos dados que deveriam ser coletados durante as visitas.15

O trabalho do ACS sofre distorções por falta de delimitação clara das atribuições que deve executar, e isso tem sido considerado o motivo da carga excessiva de trabalho. Outro fator é que esse trabalho ultrapassa o âmbito da saúde básica, na qual são chamados pela comunidade a intervir em demandas como pessoas portadoras de deficiência ou transtorno mental, violência doméstica, drogas, fome, falta de vaga em creches, etc.16,17

Todas essas atividades demandam, do ACS, empenho, disponibilidade de tempo e conhecimento, uma vez que ele atua como educador e mediador entre a população e o sistema de saúde, ajudando as pessoas a resolverem problemas pessoais e conflitos familiares. Desta forma, ele tem, em seu trabalho, a causa mais constante de estresse devido às altas cargas físicas e emocionais a que é submetido.15

Outro ponto digno de nota diz respeito ao trabalho burocrático desenvolvido pelos ACS.

"... esse trem do E-SUS, aquele monte de folha, eu acho que quem inventou isso nunca fez uma visita domiciliar na vida pra saber o tempo que 'cê' tem de, pra tá fazendo tudo isso numa casa..." (ACS 4).

"As papeladas que 'chega', os ofícios, é tanta coisa chegando pra gente ao mesmo tempo. A gente começa com um trabalho e, de repente, nesse trabalho, a gente não tem um seguimento porque é outro papel que tá chegando... é papel demais." (ACS 9).

Os ACS executam muito trabalho burocrático, e isso se deve, principalmente, a "jogos de disputas" ou o mesmo à divisão social que está presente em meio à equipe e é originada a partir da divisão do trabalho, que ultrapassa a hierarquia do conhecimento do ACS, restringindo sua participação nas decisões devido à alienação, subordinação e fragmentação que a divisão social ocasiona. Desta forma, o ACS realiza mais atividades burocráticas do que técnicas, e esse fato impossibilita o avanço do seu desempenho com as famílias.18

Os excessos de formulários que os ACS são obrigados a preencher foram apontados por eles como fator negativo em seu desempenho e causador da sobrecarga de trabalho. Essa realidade poderia ser modificada se houvesse uma revisão na formatação de formulários com vistas a condensar informações, diminuindo a quantidade de papéis.15 Mas entende-se a necessidade dos formulários para haver dados que serao transferidos ao departamento de informática do SUS (DATASUS), produzindo notoriedade às ações desenvolvidas pelos ACS.

O número insuficiente de agentes por área também foi citado como causador de sobrecarga. Sabe-se que o preconizado pelo Ministério da Saúde é de 4.000 famílias por ESF, sendo até 750 pessoas por ACS, no qual o número de visitas realizadas por dia deve ser no mínimo oito. No entanto, em Divinópolis, alguns ACS alegam faltar agentes comunitários efetivos para conseguirem a cobertura da população adscrita.

"... o trabalho é muito, a população tá aumentando... já vai pra quase três anos que 'tamo' lá... e a equipe comporta cinco agentes de saúde; nós 'tamo' muito tempo com quatro, ficou até menos, mas agora são quatro. Entao uma microárea lá 'tá' descoberta há mais tempo..." (ACS 17).

Outro fator causador da sobrecarga de trabalho foi o absenteísmo. Essa temática tem sido pesquisada entre trabalhadores de saúde, porém existem pouquíssimos estudos com abordagem desse assunto em relação ao ACS. O absenteísmo, nesse caso, significa ausência do emprego, e as causas são variadas e podem ter relação com o empobrecimento de tarefas, desmotivação, política organizacional imprópria que culminam em condições desagradáveis de trabalho, além de doenças, tanto do trabalhador como de familiares, atrasos voluntários e involuntários e política organizacional imprópria.19

Categoria II - Desmotivação profissional

Sabendo-se que a valorização profissional está diretamente relacionada à satisfação no trabalho,7 a desmotivação pode ser a causa principal das dificuldades vivenciadas no cotidiano do ACS, uma vez que ele não se sente feliz e não consegue perceber o cumprimento do objetivo do seu trabalho.

A desmotivação a que o ACS fez referência durante as entrevistas diz respeito à subcategoria descontinuidade do serviço e está relacionada a questoes que envolvem os demais membros da equipe, os três níveis de atenção e questoes socioeconômicas da população. Suas recomendações e intervenções não podem ser cumpridas ou terem garantias de cumprimento, principalmente por questoes que ultrapassam sua competência: a falta de vagas para consultas médicas especializadas e marcação de exames complexos e a falta de condição financeira da população em seguir determinadas recomendações para a melhoria ou manutenção da saúde foram citadas como exemplo. Deste modo, o ACS se sente frustrado por não ter autonomia na resolução de vários problemas que identifica ou que lhe são apresentados.

"... na atenção primária assim, o primeiro passo tem até solucionado na unidade, entao marca as consultas... O SUS, ele 'num' oferece tudo o que é necessário, que o usuário precisa; entao tem essa dificuldade, né? Sobre os exames mais sofisticados que demora marcar, não tem tudo... Especialidades, né? Que é necessário..." (ACS 14).

"... tem alguns exames que são demorados, que tem que esperar autorizar; se não for autorizado, não tem como fazer..." (ACS 9).

"... aquelas de sempre, coisa que não depende muito da gente, no caso da equipe resolver, que às vezes uma consulta especializada, exame mais importante não cobre, o paciente vem é na gente primeiro, reclamar, é". (ACS 17).

As dificuldades como a falta dos ACS nas decisões do PSF e a falta de cooperação e de planejamento, entre outras, são bastantes para concluir que a organização do trabalho do ACS está "mal" desenhada, gerando desmotivação e mau exercício da função. Sendo assim, o empoderamento dos profissionais ACS e da equipe surge como necessidade para que, juntos, possam facilitar o direito social à saúde da população.18

Categoria III - Interação da equipe

A falta de interação entre a equipe de saúde e o ACS não é um problema isolado de determinados lugares; essa mesma dificuldade já foi mencionada em outros estudos nos quais o enfermeiro ou a enfermeira são as referências principais dos ACS. Mas outras experiências têm evidenciado conflitos entre a supervisão e os ACS devido a cobranças excessivas e inflexibilidade na execução do trabalho, gerando desgaste e desorganização das atividades. Essa conduta é apontada como responsável pela fragmentação do serviço, o que dificulta a fluência do trabalho em conjunto.15,20

A equipe de saúde foi mencionada em outro estudo como espaço de acolhimento, diálogo, uniao e respeito em relação ao trabalho do ACS. Desta forma, a articulação e a Comunicação entre a equipe potencializam possibilidades de compartilhamento da produção do cuidado à comunidade, assistindo-a de maneira integralizada, considerando sua particularidade nos diversos momentos da assistência. Faz-se necessária essa comunicação para que o trabalho de promoção à saúde derive de uma programação negociada, baseada no conhecimento de todos os seus membros na construção dos objetivos, estratégias e resultados que se almejam atingir.6

Durante as entrevistas, percebemos a dificuldade dos ACS em realizar suas atividades diárias devido à falta de informação da comunidade ou à Educação popular deficitária, sobre atribuições do ACS, PACS e ESF citadas pela Portaria 2.488/2011.2 Esta falta de informação, além de ser uma dificuldade para o ACS, leva a população a encontrar demora no atendimento, corroborando ao desconhecimento de seu direito de cidadao e a não resolução de seus problemas.

O Ministério da Saúde coloca o ACS como peça importante na integração do serviço de saúde com a comunidade, podendo ele integrar tanto a equipe de ESF quanto o EACS. O ACS, por meio de orientações, contribui para soluções de problemas em sua comunidade, fazendo com que esta se torne ativa, oferecendo dados positivos ao seu município.7,11 Ele pode ser visto de duas maneiras pela comunidade: como facilitador da assistência à saúde ou como mero entregador de recados e ou encaminhamentos. Sabendo que isso vai depender do papel que o ACS desempenha dentro da equipe, se ele é considerado como um profissional importante e necessário para a ESF.21

"A equipe 'num' passa aquela segurança 'pro' paciente, no sentido de falar assim: olha, o agente vai na sua casa, é muito importante... Escuta o fulano... as informações que ele traz... é importante, faz bem pra saúde..." (ACS 10).

Diante desta fala, o ACS exorta sobre a necessidade de a equipe ajudá-lo na conscientização da comunidade, investindo na educação popular, esclarecendo suas reais atribuições e demonstrando sua importância à melhoria de saúde das famílias.

A falta de informação da comunidade sobre as atribuições do ACS colabora também com a não aceitação da visita domiciliar e a falta de confiança, levando a população a não informar ao ACS suas verdadeiras condições de saúde, ignorando sua função e buscando outros meios para conseguir o atendimento, deixando o ACS desacreditado pela equipe.5,22

"O que o agente fala tem pouca efetividade; a gente não tem respaldo maior da equipe, desconfia da gente, não confia no trabalho da gente..." (ACS 10).

"A população, às vezes, não entende o trabalho desenvolvido pelo ACS e, às vezes, a cobrança é muito grande de coisas que não 'tá' em nosso alcance, coisa que a gente não tem autonomia pra 'tá' fazendo pra eles..." (ACS 16).

Todos os membros da equipe precisam ter conhecimento sobre as políticas da ESF a fim de contribuírem na conscientização e no esclarecimento da população, visando melhorias no trabalho oferecido e também na saúde individual e coletiva, pois, quando existe essa interação, é possível que a população entenda o trabalho do ACS e o veja como um profissional importante para a melhoria da qualidade e assistência à saúde.21,23

O trabalho do ACS é confundido com atividades de outros profissionais, e esse fato é limitante no que diz respeito à resolução de problemas, pois a falta do conhecimento das atribuições do ACS pode comprometer a saúde do usuário, uma vez que este não se coloca como responsável por ela.20

"... Nem tudo depende do agente de saúde, depende do enfermeiro, depende do médico, depende do andamento da Secretaria Municipal de Saúde, do encaminhamento, tudo. Falta de interação da secretaria e dos funcionários de Saúde e de outros funcionários". (ACS 11).

É interessante ressaltar que não percebemos, durante as entrevistas, um discurso sobre remuneração como fator de valorização profissional, o que difere de outras categorias profissionais. Em 2014, foi sancionada a Lei nº 12.994, de 17 de junho, que trata da remuneração do ACS e dos Agentes de Combate a Endemias (ACE). Em estudo realizado em 2009, em Santa Catarina, com ACS, a remuneração foi citada como insatisfatória em relação ao desgaste físico e mental a que estes profissionais estao submetidos.10,15

Categoria IV - Capacitação

A falta de capacitação foi citada apenas uma vez como uma dificuldade, porém percebeu-se a necessidade da abordagem dessa temática, pela sua importância frente às ações executadas diariamente, principalmente durante as visitas domiciliares, nas quais o ACS está representando o serviço de saúde e se encontra sozinho diante de inúmeras possibilidades de abordagem e que muitas vezes é limitado por estranheza a fatos que fogem a sua capacidade técnica e intelectual.

"... eu acho que devia ter mais capacitação 'pra' gente, porque hora que a gente tá numa casa, quando a pessoa aceita a gente, abre, começa a falar alguma coisa, e a gente não sabe responder tem hora. 'Pra' mim, principalmente quando é uma gravidez psicológica. Uma vez, eu fui numa casa que a mulher tinha uma gravidez psicológica e eu ficava sem saber. O que eu falo 'pra' ela? Ai que bom!". (ACS 8).

Nessa fala, observa-se apenas um exemplo da diversidade de assuntos, dúvidas e indagações a que o ACS está sujeito. Certamente, esse profissional não é obrigado a ter respostas a todos os questionamentos, mas deve saber direcionar os problemas que surgem e dar um retorno à comunidade - são medidas que fazem parte, inclusive, da credibilidade e aceitação que o ACS tanto precisa para desenvolver sua rotina.

Como preconizado pelo Ministério da Saúde, a necessidade de o ACS residir na comunidade onde trabalha é justamente por conhecer e entender o saber popular e interagir com o conhecimento científico. Desta forma, a capacitação para esses profissionais faz-se necessária diariamente. As dificuldades dos ACS em relação à capacitação incipiente podem ser devido à inserção deles no trabalho sem experiência anterior e com o agravante da falta de entendimento dos gestores no que diz respeito à importância das intervenções praticadas pelos ACS. Desta forma, imprime-se a necessidade de qualificação permanente, incorporando novos elementos à prática e aos conceitos prévios, como maneira de transformação da realidade.23

No que diz respeito às dificuldades serem discutidas ou resolvidas dentro da equipe, percebeu-se, nos depoimentos, que são até discutidas em algumas equipes, porém a maioria dos ACS alega não haver resolutividade.

"'Tá', não é resolvido na minha opiniao... a gente traz 'pra' equipe, mas não tem efetividade..." (ACS 10).

"... Quanto à resolução diretamente da equipe (pausa) responde naquilo que é possível, mas tem se falar que é 100%; 'num' é não, alguma coisa deixa a desejar, eu sinto assim, no dia-a-dia poderia, sim, ter mais atenção, um empenho a mais..." (ACS 17).

"Olha, às vezes. A hora que passa lá 'pra' cima (fazendo referência à atenção especializada) já não é nosso alcance, muitas vezes não é solucionado..." (ACS 14).

A falta de resolução das dificuldades apresentadas foi vista sob os aspectos da governabilidade, na qual existem inúmeras dificuldades, tanto dos ACS como da comunidade, e a equipe não tem poder para saná-las. Assim, devem ocorrer maiores esforços dos gestores de saúde em aprimorar mecanismos que, de fato, melhorem a qualidade da assistência, gerando satisfação dos usuários e da equipe e credibilidade das propostas da ESF e do SUS, uma vez que uma das dificuldades apontadas foi a sobrecarga de trabalho relacionada à descontinuidade do serviço, devido ao modelo da estrutura organizacional, que não cumpre com sua proposta, observada nos problemas diagnosticados e persistindo sem resolução.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São notáveis as dificuldades que o ACS vivencia no desenvolver de suas atividades, nas quais sua essência está se perdendo em decorrência de uma sobrecarga de trabalho, desmotivação profissional e falta de interação da equipe.

A sobrecarga de trabalho, relacionada a atividades burocráticas a que o ACS está submetido, repercute negativamente em sua principal atividade, que é a visita domiciliar.

A visita domiciliar consiste na possibilidade de uma visão holística da realidade, na qual o profissional passa a conhecer os indivíduos, descortinando singularidades polidas no contexto de cada família.23 Mas, para que as visitas sejam efetivas, o ACS necessita programá-las, planejando, de forma sistemática, cada ação.

A interlocução entre a equipe é necessária, e todos os seus membros devem compreender e praticar suas atribuições, assim como entender a dinâmica da ESF, para que haja uma interação consoante que, de fato, produza resoluções aos problemas com o intuito de haver uma maior credibilidade da população e a valorização do profissional ACS.

Este estudo não pretendeu esgotar as discussões a respeito das dificuldades que o ACS encontra para executar sua prática diária, uma vez que cada área ou município tem uma dificuldade peculiar merecedora de atenção. Espera-se que os resultados encontrados nesta pesquisa possam contribuir com as equipes da ESF e gestores, inquietando-os a refletirem sobre melhorias no trabalho destes profissionais.

 

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