ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Escorbuto associado à seletividade alimentar no transtorno do espectro autista: relato de caso
Scurvy in autism spectrum disorder-associated food selectivity: a case report
Gabriella Mendes Dias Santos; Tatyana Borges Cunha Kock; Marília Ferreira Andrade; Frederico Chaves Salomão; Maria Eduarda Medeiros Macedo; Regina Maria Raffaele; Samila Ramiro da Costa Leles
Oncoclínicas Uberlândia Medical Center (UMC), Uberlândia, Minas Gerais, Brasil
Endereço para correspondênciaGabriella Mendes Dias Santos
E-mail: gabriella.mds@gmail.com
Recebido em: 27 Maio 2024.
Aprovado em: 18 Setembro 2024.
Data de Publicação: 25 Fevereiro 2025.
Editor Associado Responsável:
Cássio da Cunha Ibiapina
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte/MG, Brasil.
Conflito de Interesse: Não há.
Fontes Apoiadoras: Não houve fontes apoiadoras.
Comitê de Ética: Número do Parecer - 72680423.3.0000.5152.
Resumo
INTRODUÇÃO: Alertar os profissionais de saúde sobre a possibilidade de escorbuto em pacientes autistas com seletividade alimentar extrema.
RELATO DO CASO: criança de 3 anos, do sexo masculino, internado em hospital devido à queixa de claudicação, constipação e dor em membros inferiores há dois meses e histórico de lesão oral. Após avaliação médica, não foram encontradas alterações significativas em exames complementares e de imagem. Foi avaliado pela odontologia hospitalar que observou lesão granulomatosa em gengiva e rebordo alveolar superior, além de pequenos granulomas em gengiva inserida posterior de maxila bilateralmente. Realizada biópsia incisional que demonstrou aspecto morfológico de processo inflamatório inespecífico com formação de tecido de granulação exuberante. Devido a quadro gengival, petéquias em membros inferiores e restrição alimentar, foi aventada a hipótese de hipovitaminose C (escorbuto), confirmado em exame laboratorial. Iniciado vitamina C via oral na dose de 300mg uma vez ao dia e paciente evolui com melhora progressiva da movimentação dos membros inferiores e das lesões orais.
DISCUSSÃO: O escorbuto é causado por deficiência grave de vitamina C, ou ácido ascórbico, no organismo. Essa vitamina participa da regulação do potencial de oxirredução intracelular. É essencial para a síntese de colágeno, o que facilita a hidroxilação enzimática de prolina para hidroxiprolina. A falha dessa etapa na síntese de colágeno causa prejuízo na cicatrização de feridas, função deficiente de fibroblastos e osteoblastos. Na cavidade oral, a deficiência de vitamina C aumenta a suscetibilidade às doenças periodontais.
CONCLUSÃO: A seletividade alimentar comumente presente no transtorno do espectro autista é caracterizada por dietas monótonas e frequentemente não incluem alimentos com fonte de vitamina C, aumentando o risco de escorbuto e suas consequências.
Palavras-chave: Escorbuto; Seletividade alimentar; Transtorno do espectro autista; Doença periodontal.
INTRODUÇÃO
O escorbuto é causado por deficiência grave de vitamina C, ou ácido ascórbico, no organismo. A vitamina C participa da regulação do potencial de oxidorredução intrecelular1. É essencial para a síntese de colágeno. A falha dessa síntese causa prejuízo na cicatrização de feridas e função deficiente de fibroblastos e osteoblastos1-3. Seu papel antioxidante também é muito conhecido. Entretanto, em baixas concentrações, pode atuar como um agente pró-oxidante2. Nos estágios iniciais, a deficiência de vitamina C causa mal-estar, fadiga e letargia. Após um a três meses de baixa ingestão, pode levar à anemia, mialgia, dor óssea, hematomas, petéquias e alteração de humor3. Na cavidade oral, a deficiência de vitamina C aumenta a permeabilidade de barreira gengival, ocasionando maior suscetibilidade às doenças periodontais1.
Embora seja doença muito rara na atualidade, o escorbuto encontra-se presente nos dois hemisférios do planeta1. Manifesta-se, em circunstâncias especiais, em todas as faixas etárias. Não costuma acometer a faixa etária pediátrica, mas, em crianças com restrições alimentares graves, é uma hipótese diagnóstica que deve ser lembrada4. Muitas vezes, nessa população infantil e com seletividade alimentar, o diagnóstico é confundido e consequentemente atrasado; uma vez que outras morbidades como malignidades, coagulopatias, artrite séptica, osteomielite ou distúrbios reumatológicos são frequentemente consideradas inicialmente5-8. Este relato de caso tem como objetivo chamar a atenção para o diagnóstico de hipovitaminose C em criança com manifestações musculoesqueléticas, de pele e de cavidade oral e seletividade alimentar associada a transtorno do espectro autista.
RELATO DE CASO
Pré-escolar do sexo masculino, 3 anos de idade, procedente do interior de Minas Gerais, portador de transtorno do espectro autista nível 2, internado para investigação de dor em membros e alteração progressiva da marcha, com claudicação há 2 meses e incapacidade de se manter em pé há cerca de 1 mês antes da internação. Fez uso de dipirona, naproxeno e corticoide oral, sem melhora. Refere ainda recusa alimentar, perda de peso e irritabilidade. Na semana anterior à internação, teve uma queda da própria altura, com trauma em boca, sendo feita extração de incisivo central superior direito decíduo, com formação, no local, de lesão de crescimento rápido.
Ao exame físico, apresentava dor à extensão e rotação dos membros inferiores e ausência de edema articular. Foi avaliado pelo ortopedista, que não observou comprometimento de sistema osteoarticular; solicitada radiografia de bacia que não mostrou alterações. Também foi avaliado pela neurologista pediátrica que aventou hipótese de polirradiculopatia, descartada após ressonância de coluna sem alterações e análise do liquor sem alterações.
Ao exame clínico oral, observada lesão granulomatosa em gengiva e rebordo alveolar superior (Figura 1) e também outros pequenos granulomas em gengiva posterior de maxila bilateralmente (Figura 2). Pela característica das lesões orais e pelo comprometimento difuso, optado por biópsia gengival e solicitado avaliação da oncologia pediátrica pela possibilidade de infiltração leucêmica. Realizada biópsia incisional que demonstrou aspecto morfológico de processo inflamatório inespecífico com formação de tecido de granulação exuberante.
Avaliação laboratorial mostrou apenas anemia (Tabela 1). O mielograma mostrou 26% de blastos da linhagem mieloide, mas com imunofenotipagem não sugestiva de infiltração neoplásica, descartado leucemia, sendo considerado possível reação medular. Devido a quadro gengival, petéquias em membros inferiores e restrição alimentar importante, foi aventada a hipótese de hipovitaminose C. Na avaliação nutricional, foram encontrados hipovitaminose D (17,7mg) e níveis muito baixos de vitamina C (0,15mg) confirmando o diagnóstico de escorbuto (Tabela 1). Iniciado vitamina C via oral na dose de 300mg uma vez ao dia, e paciente evolui com melhora progressiva da movimentação dos membros inferiores e das lesões orais, sendo possível a alta hospitalar.
DISCUSSÃO
O ácido ascórbico (vitamina C) tem um papel crucial na hidroxilação do colágeno. Alguns tecidos como pele, gengivas, membranas mucosas e ossos contêm uma maior concentração de colágeno e, portanto, são mais suscetíveis à deficiência dessa vitamina9. Manifestações musculoesqueléticas podem estar presentes em 80% dos casos de escorbuto e são mais proeminentes na população pediátrica. No caso em questão, o que motivou a procura pelo atendimento médico foi a dor em membros com limitação à movimentação do paciente e dificuldade de manter-se na posição ereta. Sintomas sistêmicos como fadiga, perda de peso e perda de apetite também são relatados, conforme observado neste paciente, com repercussões na curva ponderoestatural e no seu estado geral9. Sintomas orais podem incluir doença gengival caracterizada por edema, equimoses, sangramento gengival e afrouxamento de dentes1,4,9. Neste paciente as lesões gengivais chamaram atenção e motivaram a investigação de causas não apenas reumatológicas e/ou onco-hematológicas.
Casos de escorbuto podem ser de difícil diagnóstico. Outros relatos de caso presentes na literatura apresentam também diversas hipóteses diagnósticas iniciais, como polirradiculopatias, dores do crescimento, doenças onco-hematológicas, e reumatológicas até se chegar ao diagnóstico de escorbuto10,11.
Uma revisão narrativa12 de casos de escorbuto na faixa etária pediátrica encontrou 116 casos descritos nos anos 2000 a 2021; a pesquisa revelou prevalência no sexo masculino, com comorbidades neurológicas; as manifestações mais frequentes foram queixas musculoesqueléticas; 43% apresentaram sangramento gengival e 27% hipertrofia gengival. Foi constado que 18% dos pacientes foram submetidos a procedimentos invasivos e 52% tiveram hipótese diagnóstica de doenças oncológicas; dados que coincidem com os do paciente deste relato12.
A vitamina C é encontrada em frutas cítricas (laranja, kiwi, morango, tangerina) e vegetais (brócolis, repolho, batata, pimentão, couve-flor e espinafre). Em recém-nascidos e lactentes, a principal fonte da vitamina C é o leite materno. A vitamina C é solúvel em água e seu excesso é excretado na urina. É armazenada no corpo em quantidades limitadas, devendo ser reposta através da ingestão alimentar regular13.
Os fatores de risco para deficiência de vitamina C incluem dietas da moda, dietas monótonas e dietas muito seletivas, que levam a restrições alimentares importantes com deficiências de macro e micronutrientes3. Embora não seja comum na população pediátrica, o escorbuto pode surgir em criança com restrições alimentares importantes, incluindo-se autistas, crianças com paralisia cerebral ou mesmo com distúrbios neurológicos graves1,3,4. No caso em questão, o paciente tinha transtorno do espectro autista com uma seletividade alimentar grave associada, levando a uma dieta monótona e composta de menos de 10 tipos de alimentos, à base de carboidratos e pobre em fibras. A criança não fazia ingestão de frutas e vegetais, que são as principais fontes naturais de vitamina C.
O tratamento consiste na suplementação de vitamina com melhora dos sintomas nas primeiras 24 horas, diminuição da dor em dois a quatro dias e melhora das lesões gengivais em duas a três semanas. A completa reversão do quadro pode ocorrer após três meses da adequada suplementação4. O paciente em questão conseguiu começar a apoiar os pés no chão cerca de 3 dias após o início da suplementação. A administração por via endovenosa é muito mais eficaz na elevação dos níveis séricos de ácido ascórbico. No caso apresentado, foi realizado por via oral devido à indisponibilidade de vitamina C endovenosa no hospital.
Em humanos, a necessidade de vitamina C, em geral, é satisfeita por fontes naturais e suplementação de vitamina C na dieta habitual. O único benefício de suplementar vitamina C é para prevenção de escorbuto, sendo necessário baixas doses (menores ou igual a 10mg por dia)3. Nos casos de tratamento, doses maiores são recomendadas. As crianças com diagnóstico de transtorno do espectro autista, apresentam, frequentemente, sensibilidades sensoriais que contribuem para os hábitos alimentares restritivos, dificuldade de adaptação a novos alimentos, texturas e sabores. Inicialmente é válida a tentativa de incorporação de alimentos que contenham vitamina C na dieta em colaboração com a família e nutricionista. Alternativas podem ser utilizadas em diversas formas farmacêutica da vitamina C: via oral (comprimidos mastigáveis, cápsulas, efervescentes), endovenosa, intramuscular e via retal14,15. Neste caso foram usados 300mg por dia pela intensidade dos sintomas, conforme recomendado na literatura (100 a 300mg/dia)4,7,16.
CONCLUSÃO
O reconhecimento precoce de deficiências nutricionais, tais como escorbuto, pode ser difícil porque os sintomas são muitas vezes vagos e inespecíficos e podem imitar uma variedade de condições mais comuns. Em crianças com restrição ou seletividade alimentar, é essencial prevenir o escorbuto através de alimentação rica em alimentos que contenham vitamina C e, se necessário, de suplementação da vitamina.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
As contribuições dos autores estão estruturadas de acordo com a taxonomia (CRediT) descrita abaixo:
Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - análise e edição: Gabriella Mendes Dias Santos, Tatyana Borges Cunha Kock, Marília Ferreira Andrade, Frederico Chaves Salomão, Maria Eduarda Medeiros Macedo, Regina Maria Raffaele, Samira Ramiro da Costa Leles. Administração do Projeto, Supervisão & Escrita - rascunho original: Gabriella Mendes Dias Santos, Tatyana Borges Cunha Kock, Marília Ferreira Andrade. Validação, Software: Gabriella Mendes Dias Santos. Recursos & Aquisição de Financiamento: Marília Ferreira Andrade. Curadoria de Dados & Análise Formal: Gabriella Mendes Dias Santos, Tatyana Borges Cunha Kock, Marília Ferreira Andrade.
COPYRIGHT
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