ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Impacto dos membros da atenção básica nas internações por condições sensíveis à atenção primária em menores de um ano no município de Betim/MG de 2009 a 2019: um estudo ecológico de séries temporais
Impact of primary care members on hospitalizations due to ambulatory care sensitive conditions in children under one year of age in the municipality of Betim/MG from 2009 to 2019: an ecological time series analysis
Danilo Alexandre Martins Durães1; Paulo Roberto Barbato2; Marcela Lopes Santos3; Lara Lívia Santos da Silva1; Joanna d'Arc Lyra Batista4,5
1. Universidade Federal de Goiás, Departamento de Saúde Coletiva, Goiânia, Goiás, Brasil
2. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Fonoaudiologia, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
3. Universidade de Brasília, Departamento de Saúde Coletiva, Brasília, Distrito Federal, Brasil
4. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Departamento de Saúde Coletiva e Programa de Pós-Graduação em Pediatria, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
5. Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Joanna d'Arc Lyra Batista
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
E-mail: joanna.lyra@ufcspa.edu.br
Recebido em: 29 Abril 2024.
Aprovado em: 27 Maio 2024.
Data de Publicação: 25 Fevereiro 2025.
Conflito de Interesse: Os autores declaram não ter conflitos de interesse.
Fontes apoiadoras: Não houve fontes apoiadoras.
Editor Associado Responsável:
Dr. Cássio da Cunha Ibiapina
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte/MG, Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: O indicador Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) representa um conjunto de agravos para as quais o acesso eficaz à Atenção Básica (AB) pode reduzir o risco de hospitalizações. Nesse sentido, é importante avaliar se as coberturas da AB e de seus membros podem influenciar esse indicador em crianças menores de um ano.
OBJETIVO: Avaliar o impacto da AB e de seus membros sobre a taxa de ICSAP em crianças menores de um ano no município de Betim/MG.
MÉTODOS: Trata-se de um estudo ecológico, de série temporal, realizada em Betim/MG no período de 2009 a 2019. Foram calculadas a taxa de ICSAP em crianças menores de um ano e as coberturas da AB, das equipes da Estratégia Saúde da Família (eSF) e das equipes da Atenção Básica (eAB). Modelos de regressão linear e regressão de joinpoint (por pontos de inflexão) de Poisson foram utilizados nas análises.
RESULTADOS: Observou-se queda na taxa de ICSAP em menores de um ano entre 2009 e 2019 e aumento na cobertura da AB e de seus membros no período. Foi verificada uma associação negativa entre ICSAP, a cobertura de AB e do componente eSF.
CONCLUSÃO: O aumento na cobertura da AB foi associado com a redução na taxa de ICSAP em crianças menores de um ano no município de Betim/MG.
Palavras-chave: Avaliação do impacto na saúde; Atenção primária à saúde; Estratégias de saúde nacionais; Saúde da criança; Hospitalização.
INTRODUÇÃO
A Atenção Primária à Saúde (APS), também chamada de Atenção Básica (AB), é definida como sendo o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, tratamento e reabilitação, sendo a porta de entrada preferencial de usuários na Rede de Atenção à Saúde (RAS)1. Essas ações são ofertadas no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como um direito constitucional e devem ser ofertadas com equidade, mediante uma RAS integrada e articulada2.
No Brasil, a Medicina de Família e Comunidade é exercida predominantemente na AB. Essa especialidade, reconhecida pela Comissão Nacional de Residência Médica em 1981, é fundamental na consolidação de um núcleo de conhecimentos e práticas caracterizado por uma clínica centrada na pessoa (e não na doença), no cuidado continuado, e na gestão de planos terapêuticos familiares e individuais3. Portanto, o médico de família e comunidade tem papel fundamental no fortalecimento da AB no país.
Um dos indicadores mais utilizados para avaliar o acesso e a qualidade da AB são as Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP). Esse indicador representa o conjunto de agravos para os quais as ações coordenadas pela AB visam diminuir o risco de hospitalizações, minimizar as consequências psicológicas e otimizar os recursos para o sistema de saúde4. No Brasil, as ICSAP ganharam evidência no cenário nacional em 2008, após publicação da Lista Brasileira de ICSAP, composta por 19 grupos de causas de internações e 74 diagnósticos, de acordo com a Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Após esse momento, essa lista passou a ser utilizada como instrumento de avaliação indireta da qualidade da AB, com aplicabilidade para avaliar o desempenho da ESF nos âmbitos nacional, estadual e municipal5.
Como indicador, as ICSAP se comportam de forma diferenciada em relação à idade, sendo importante que se estude as faixas etárias de forma separada. Nesse sentido, os estudos na faixa etária infantil têm demonstrado a importância de se entender as internações por condições sensíveis à APS como um importante indicador de saúde6.
Em Minas Gerais (MG), no período de 2004 a 2013, Arantes e colaboradores (2018) descreveram a taxa de ICSAP em grupos de municípios conforme o porte populacional. Para os pesquisadores, não só questões ligadas à AB, mas também outros pontos da RAS (Atenção Secundária e Atenção Terciária) podem influenciar nas taxas de ICSAP. Desse modo, destacam a importância da RAS, seja na resolutividade de casos na AB, na atenção especializada ambulatorial ou mediante políticas de expansão de leitos e a realização de cirurgias ambulatoriais7.
Especialmente na AB, a Estratégia Saúde da Família (ESF), criada como uma estratégia de reorganização da APS no país de acordo com os preceitos do SUS, tem como objetivo ampliar a resolutividade de ações, a melhoria dos indicadores de saúde, além de propiciar uma melhor relação custo-efetividade8. Diferente das equipes de Atenção Básica (eAB), que são compostas minimamente por médico e enfermeiro, podendo cumprir uma carga horária de 20 ou 30 horas, as equipes de Saúde da Família (eSF) são minimamente compostas por médico, enfermeiro, agente comunitário de saúde e técnico de enfermagem, cumprindo 40 horas cada profissional.
Diante dessa realidade, este estudo tem como objetivo avaliar o impacto da AB e dos membros eAB e eSF sobre as taxas de ICSAP em crianças menores de um ano no município de Betim/MG, de 2009 a 2019.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo observacional ecológico, de tendência temporal, com dados referentes às ICSAP em crianças menores de um ano, e às coberturas da AB, das eSF e das eAB, do município de Betim/MG, no período de 2009 a 2019.
A coleta de dados foi realizada entre abril e junho de 2021. Os dados sobre hospitalizações em menores de um ano foram obtidos no Sistema de Informação Hospitalar do SUS (SIH/SUS) e o total de crianças nascidas vivas, para o cálculo das taxas de ICSAP, no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC). Foram incluídas todas as Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) relativas aos registros de internação de crianças menores de um ano de idade em hospitais públicos, privados ou filantrópicos que prestavam serviços ao SUS, no período de 2009 a 2019. Os dados das coberturas da AB e das eSF foram coletados por meio do e-Gestor AB do Ministério da Saúde, usando-se como referência o mês de julho de cada ano para compor o banco de dados9,10. Como a cobertura da AB é a somatória das coberturas dos membros eSF e eAB, o cálculo da cobertura das eAB foi realizado subtraindo da cobertura da AB o componente eSF. A população do município de Betim/MG foi obtida pelo site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As coberturas foram calculadas pela razão entre a população coberta e a população total deste município, limitada a 100%.
O Produto Interno Bruto (PIB) per capita médio de Betim/MG foi utilizado como variável proxy de condição socioeconômica para ajustar o modelo como possível variável de confusão. A covariável socioeconômica PIB per capita foi extraída do site do IBGE, com dados obtidos de 2009 a 2018. O valor anual para 2019 foi estimado por extrapolação linear11.
Consideraram-se as taxas de ICSAP em menores de um ano a variável desfecho do estudo. Para definição das causas de hospitalizações, foi utilizado o conjunto de 19 causas elencadas na Lista Brasileira de condições sensíveis à atenção primária5. As taxas de ICSAP em menores de um ano foram calculadas dividindo o total de internações pelo número de crianças nascidas vivas a cada ano, no município de Betim/MG, de 2009 a 2019, multiplicado por 1.000. Para o percentual de cobertura da AB e de seus membros (eSF e eAB) foram consideradas as variáveis de exposição.
Em relação à análise estatística, os principais grupos de causas específicas de ICSAP, ou seja, as que tiveram mais de 100 observações no grupo, foram analisadas por meio de modelo de regressão. Dentre essas causas principais, também foram calculadas as taxas de internações por sífilis congênita, que compõem o grupo de doenças relacionadas ao pré-natal e ao parto. Por se tratar de um estudo em menores de um ano e pelo fato de a sífilis congênita representar mais de 90% do total de internações do grupo "Doenças relacionadas ao pré-natal e parto", optou-se por denominar esse grupo de "sífilis congênita" como realizado por Pinto Júnior et al. (2020)12.
Para a análise de tendência temporal, usaram-se técnicas de regressão joinpoint (por pontos de inflexão) de Poisson (Joinpoint Regression Program versão 4.9.0.0)13. Nesta análise, ao se perceber onde ocorre a mudança de padrão, podemos verificar se essa mudança coincide com alguma outra variável explicativa, no caso do estudo, com a mudança de coberturas da AB, das eSF, das eAB ou com taxa proporcional das ICSAP.
Uma vez que o modelo foi definido, a variação percentual anual foi calculada para avaliar se a tendência observada seria estatisticamente significativa. Nesse caso, a hipótese nula é de que a variação anual é zero, ou seja, as taxas não estão nem aumentando nem diminuindo. Foram apresentados os Intervalos de Confiança (IC) de 95%. Os cálculos foram feitos pelo Grid Search Method, padrão do programa que definiu um número mínimo de zero a um, número máximo de três joinpoints.
Em seguida, procedeu-se com o cálculo da mudança anual percentual (APC) e da mudança anual percentual média (AAPC) e seus IC definidos pelo Método Paramétrico; e realizou-se regressão linear com as tendências de ICSAP em crianças menores de um ano e a cobertura da AB, eSF, eAB e PBI per capita do município de Betim/MG.
O armazenamento dos dados foi realizado no programa Microsoft Office Excel versão 2016 e as análises estatísticas de regressão simples foram realizadas por meio do software Stata, versão 11.2 (Stata Corp LP, College Station, Estados Unidos).
Por se tratar de um estudo com dados secundários oficiais, de domínio público, não foi necessário o registro do protocolo de pesquisa no Sistema CEP/CONEP, conforme consta na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS/MS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
RESULTADOS
Em Betim/MG, no período de 2009 a 2019, foi registrado um total de 17.341 internações em crianças menores de um ano, das quais 19,8% (3.430) foram decorrentes de ICSAP. A taxa média anual de ICSAP em menores de um ano foi de 47,9 por 1.000 nascidos vivos. Dentre os 19 grupos de causa da Lista Brasileira de ICSAP, esse município não apresentou internação em menores de um ano no componente "angina" durante o período estudado, totalizando, então, 18 grupos analisados.
O grupo de causas com maior número de internações dentre as ICSAP de 2009 a 2019 foi a pneumonia bacteriana (n = 1.199; 34,9%), seguida de doenças pulmonares (n=1.000; 29,1%), asma (n=434; 12,6%), sífilis congênita (n=175; 5,1%), doenças preveníveis por imunização (n=133; 3,9%), epilepsias (n=130; 3,8%) e infecções de ouvido, nariz e garganta (n=110; 3,2%). Outras 11 causas foram responsáveis por menos de 2,0% das internações.
Observou-se que há uma tendência geral decrescente nas taxas das ICSAP ao longo do período estudado, conforme apresentado na Figura 1. No entanto, a análise no joinpoint mostrou um ponto de inflexão em 2016 com alteração do padrão de tendência decrescente para o crescente (p=0,001).
As linhas de tendência do percentual das coberturas da AB, das eSF e das eAB em Betim/MG durante os anos de 2009 a 2019 estão apresentadas na Figura 2. Observa-se um aumento expressivo nas coberturas da AB e das eSF ao longo do período estudado.
A Tabela 1 apresenta a tendência temporal e as variações percentuais anuais para a proporção das coberturas da AB, seus membros e as taxas de ICSAP, bem como para as sete principais causas de ICSAP em menores de um ano do município de Betim/MG.
No período de 2009 a 2019, verificou-se uma tendência significativa de incremento na cobertura de AB (AAPC = 6,3; p = 0,001), cobertura das eSF (AAPC = 8,5; p = 0,005) e na taxa de internação por sífilis congênita (AAPC = 20,1; p<0,001). Tendência de redução significativa no período foi observada nas taxas de internações por pneumonias bacterianas (AAPC = -18,7; p<0,001) e nas taxas de internação por asma (AAPC = -18,2; p<0,001).
A cobertura da AB era de 47,1% em 2009 e passou a 93,4% em 2019. A cobertura das eSF, que era de 32,1% no início do período avaliado, aumentou para 71,0% em 2019. Já a cobertura das eAB variou pouco, de 15,0% em 2009 para 22,3% em 2019.
O PIB per capita médio de Betim/MG, no período de 2009 a 2019, foi de R$ 57.079,88, classificado como de alto porte econômico e tendo ocupado no ano de 2018 o 25º lugar no ranking estadual (IBGE, 2021)10.
Não houve associação entre as taxas de ICSAP e o PIB municipal per capita, assim como com a cobertura das eAB (p=0,587; R2=0,034 e p=0,270; R2=0,133, respectivamente). Por outro lado, observou-se uma associação negativa estatisticamente significante entre as taxas de ICSAP e o percentual de cobertura da AB (p=0,032; R2=0,417), em que o aumento de 1% da AB no município diminuiu a taxa de ICSAP em 0,91%. Também foi observada uma associação negativa entre as taxas de ICSAP e a cobertura de eSF, ou seja, o aumento de 1% da cobertura das eSF diminuiria a taxa de ICSAP em 0,49%, porém essa associação, embora não significativa, possui p valor abaixo de 0,1 (p=0,096; R2=0,277).
DISCUSSÃO
No presente estudo, realizado no município de Betim/MG, foi observado que a taxa média anual de ICSAP em menores de um ano entre 2009 e 2019 foi de 47,9 por 1.000 nascidos vivos. Além disso, a cobertura da AB foi negativamente associada com a taxa de ICSAP nesse período (p=0,032; R2=0,417).
Em um estudo nessa mesma faixa etária, no Estado da Bahia, a mediana das taxas municipais foi de 46 internações evitáveis por 1.000 nascidos vivos em 2012, o que corrobora os achados deste estudo. Já no Brasil, de 2000 a 2015, foram registradas 3.138.540 ICSAP em crianças menores de um ano, com variação das taxas de ICSAP de 72,7/1.000 NV a 48,14/1.000 NV4.
No tocante à cobertura de serviços primários de saúde, destaca-se no período o aumento da cobertura na modalidade de eSF e da AB e, de forma mais intensa, a partir do ano de 2014. O processo de transição para ESF no município de Betim/MG ocorreu mais tardiamente em relação ao Brasil e a Minas Gerais. Assim, a cobertura das eSF mais que dobrou (2,2 vezes), de 32,0% em 2009 para 71,0% em 2019, enquanto a cobertura da AB quase dobrou (1,98 vezes), de 47,0% em 2009 para 93,0% em 2019.
Segundo o Ministério da Saúde14, no ano de 2020, o país alcançou 64,0% de cobertura de ESF e 76,0% de cobertura de AB. No mesmo ano, no Estado de Minas Gerais, a cobertura de ESF foi de 78,0% e a cobertura de AB foi de 88,0%. Em um estudo sobre a tendência das ICSAP e os fatores associados na cidade de Porto Alegre/RS de 2008 a 2013, a cobertura de eSF aumentou de 7,5 para 31,2% no período, ou seja, cerca de quatro vezes15.
Dessa forma, percebe-se que as coberturas da ESF em Minas Gerais e em Betim/MG são maiores que a média do Brasil, o que demonstra o avanço na transição de modelo assistencial. No entanto, ainda há margem de avanço da ampliação da cobertura e da consolidação da ESF em Betim, considerando a prevalência das ICSAP existentes.
Quanto às causas mais frequentes de ICSAP, destacou-se a magnitude das doenças respiratórias (pneumonia, doenças pulmonares e asma) no conjunto de condições que mais acometeram os menores de um ano no município de Betim/MG, sendo as pneumonias bacterianas (34,9%) a principal causa. Situação epidemiológica bem diferente é observada no Brasil, conforme mostrado em um estudo de Pinto Júnior et al. (2018)4, que, do total de hospitalizações, as gastroenterites infecciosas foram a principal causa (39,2%). Segundo os autores, as internações por gastroenterites infecciosas podem estar relacionadas às condições de saneamento, acesso e abastecimento de água potável ainda precárias em algumas regiões.
Houve uma tendência significativa de queda na taxa de internações por asma em Betim, com variação anual de -18,2%, e na taxa de internações por pneumonia bacteriana, com variação anual de -18,7%. Em estudo realizado em Minas Gerais sobre internações em menores de um ano por condições sensíveis à atenção primária no período de 2008 a 2018, também foi observada tendência decrescente nas internações por asma (variação anual de -9,6%) e infecções por pneumonias bacterianas (variação anual de -56,2%) e aumento (variação anual de 25,6%) de internações por doenças preveníveis por imunização, com destaque para a sífilis congênita, que apresentou 4,20/10.000 casos em 2008 para 56,1/10.000 casos em 201816.
É importante ressaltar que o Programa Farmácia Popular, que oferece medicamentos gratuitamente à população, pode ter grande impacto nas taxas de internações por doenças respiratórias observadas no estudo. Em 2011, o programa passou a oferecer gratuitamente à população medicamentos indicados para o tratamento de hipertensão, diabetes e asma, por meio da estratégia "Saúde Não Tem Preço". Em relação à pneumonia bacteriana, o Programa Nacional de Imunização implementou, a partir de 2010, a vacina pneumocócica conjugada 10-valente. Um estudo indicou que após esta implementação houve uma prevalência 19% menor de hospitalização por pneumonia adquirida na comunidade em crianças menores de um ano de idade17.
Verificou-se uma tendência significativa de incremento na taxa de internação por sífilis congênita em Betim, com variação anual de 20,1%. Esse cenário é ainda um desafio para a saúde pública, pois, além de poder afetar o crescimento e o desenvolvimento infantil, impacta diretamente na permanência prolongada e nos custos das internações evitáveis. A recente tendência de aumento nas taxas de ICSAP observada neste estudo pode ser reflexo do aumento das taxas de sífilis congênita, o que também pode indicar falhas na assistência ao pré-natal. O aumento da taxa de hospitalização por sífilis congênita também é observado no Brasil, conforme mostrado no estudo de Pinto Júnior et al. (2018)4. De 2000 a 2015, em relação aos grupos de causas específicas de ICSAP em crianças brasileiras no período neonatal, as taxas de hospitalização por sífilis congênita apresentaram aumento percentual anual de 24,8%4.
Em 2011, o Ministério da Saúde lançou a Rede Cegonha como forma de alcançar mudanças no modelo de atenção ao parto e ao nascimento, de forma a ampliar o acesso e a qualificação das práticas de cuidado e gestão na assistência à saúde da mulher e da criança18. A Rede Cegonha promoveu uma maior detecção de sífilis gestacional, o que se torna importante para prevenção de sífilis congênita ao se notificar e tratar os casos de sífilis gestacional. No sentido oposto, e afetando diretamente a assistência à gestante diagnosticada com sífilis no Brasil, houve um recente desabastecimento de Penicilina Benzatina (PB), que perdurou por alguns anos a partir de 201319.
Segundo o relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) de 2016, o aumento da incidência de sífilis congênita pode ser atribuído ao aprimoramento do sistema de vigilância, à ampliação do acesso e da distribuição de testes rápidos e ao desabastecimento de penicilina, principalmente19. Nesse sentido, tanto o recente aumento da tendência das taxas de sífilis congênita, que coincide com o aumento da tendência de ICSAP, quanto a cobertura da AB, que se mostrou associada negativamente a essas internações, demonstram a importância da assistência primária na diminuição das taxas de ICSAP em crianças menores de um ano. O aumento da cobertura da AB e a melhor assistência no pré-natal, para detecção dos casos de sífilis gestacional e tratamento efetivo desses casos, são primordiais para que as taxas de ICSAP voltem a uma tendência de declínio.
No presente estudo, observou-se que as taxas de ICSAP em menores de um ano, de 2009 a 2019, apresentaram tendência geral decrescente, com variação percentual anual média negativa de 4,8%. Porém, ao se analisar o ponto de inflexão (joinpoints), evidenciou-se uma tendência decrescente até 2016, e crescente de 2016 a 2019. Conforme mostrado em um estudo de Pinto Júnior et al. (2018)4, o Brasil apresentou uma redução no percentual anual de 7,4% entre 2000 e 2015. Outro estudo, de 2012 a 2014, no Estado do Ceará, descreveu variação percentual positiva em duas regiões de saúde, 4,8% e 7,7%20. No caso de Betim/MG, o aumento das ICSAP, no período de 2016 a 2019, pode também ter sido influenciado por fatores ligados aos processos de trabalho da AB, aos modelos assistenciais e à gestão do enfrentamento dos principais problemas de saúde pública.
Na análise de regressão, foi observado que o aumento de 1% da cobertura da eSF diminui a taxa de ICSAP em 0,49%. Já a análise conduzida com cobertura de AB esteve associada com a taxa de ICSAP de forma significativa, em que cada 1% de aumento da cobertura poderia implicar 0,91% de diminuição da taxa de ICSAP. Como a expansão da cobertura da eSF aumentou a cobertura da AB de forma direta, mostrando, assim, a importância de se priorizar a eSF na redução das taxas de ICSAP. No município de Montes Claros, em Minas Gerais, quando se avaliou exclusivamente o período em que a cidade teve cobertura populacional superior a 70% pela ESF, foram registradas correlações importantes que apontam interdependência de um crescente número de equipes sobre a redução da taxa de internação, dos valores pagos e até do número de diárias geradas pelas ICSAP21.
Sobre a não associação das taxas de ICSAP com as variáveis PIB municipal per capita e cobertura da eAB, em uma revisão integrativa da literatura, 82% dos artigos indicaram a influência de determinantes e condicionantes sociais da saúde, com o desfecho das ICSAP22. Seria importante analisar outras variáveis socioeconômicas em relação ao desfecho analisado nesse estudo, mesmo que o PIB não tenha apresentado associação.
Como limitação do estudo, podemos citar a não disponibilidade de dados públicos de outras variáveis socioeconômicas, da série histórica analisada, o que seria importante para avaliar outras associações ao desfecho analisado. Para amenizar essa falta de informação e limitações, utilizou-se a variável PIB per capita municipal como proxy da condição socioeconômica do município. Outra limitação é de se trabalhar com dados secundários, mesmo com os avanços dos Sistemas de Informação à Saúde (SIS) do SUS nos últimos anos. Sabe-se que a qualidade e a disponibilidade de dados podem não retratar toda a realidade das internações em menores de um ano.
É importante ressaltar que ainda existem muitas barreiras de acesso à AB de qualidade. A correlação entre as coberturas da AB, da eSF e da taxa de ICSAP aponta que o panorama da tendência das ICSAP pode ser modificado positivamente, mediante políticas de saúde com foco na melhoria da saúde das crianças menores de um ano. Especial atenção deve ser dada também à assistência pré-natal, com foco na detecção de casos de sífilis gestacional e tratamento adequado para evitar a sífilis congênita. Portanto, a definição de novas estratégias de implementação, expansão e consolidação do modelo da ESF, ao longo do tempo, deverá resultar em melhorias na qualidade e na resolutividade no acesso aos serviços de saúde na AB.
Conclui-se, portanto, que o aumento na cobertura da AB foi associado significativamente com a redução na taxa de ICSAP em crianças menores de um ano em Betim, no período de 2009 a 2019. Como o aumento da cobertura da AB foi semelhante ao aumento da cobertura das eSF no período, reforça-se a importância da ESF como estratégia preferencial para a redução das ICSAP em menores de um ano nesse município.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
Usar CRediT - Contributor Roles Taxonomy como referência. (https://casrai.org/credit/):
Conceitualização, Investigação, Metodologia e Escrita: Danilo Alexandre Martins Durães e Joanna d'Arc Lyra Batista. Administração do Projeto, Supervisão e Escrita - rascunho original: Danilo Alexandre Martins Durães e Joanna d'Arc Lyra Batista. Curadoria de Dados e Análise Formal: Danilo Alexandre Martins Durães, Paulo Roberto Barbato e Joanna d'Arc Lyra Batista. Redação, Revisão e Edição: Paulo Roberto Barbato, Marcela Lopes Santos, Lara Lívia Santos da Silva e Joanna d'Arc Lyra Batista.
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